Em
Canela de Boi, no interior mais interior do país, reina um silêncio
bom de conformidade com seu Janjão, que por isso mesmo vive em
conformidade com todo mundo. Homem estimável está ali: paga remédio
para quem adoece, enterra quem morre, emprega a viúva ou a filha
moça do falecido, espalha outras benemerências. Praticamente dono
do município, quem escolhe o prefeito é ele, ele quem escolhe os
vereadores, ele quem diz que está na hora de mudar, e a mudança se
faz. Geralmente seu Janjão não gosta de mudar, mas sendo
aconselhável desentortar o torto ou entortar o reto para
desentortá-lo em seguida, seu Janjão faz tudo isso da melhor
maneira possível.
Turíbio
apareceu para desfazer essa harmonia, e contou com a reprovação
geral. Queria introduzir regras insólitas no funcionamento da
comunidade, e uma dessas era que seu Janjão não precisava ser o
único a decidir a sorte de Canela de Boi. Todos poderiam
habilitar-se ao exercício dessa responsabilidade, quando mais não
fosse porque seu Janjão já estava meio sobre o Matusalém. Caducar
não caducava, mas. E era muito por demais mandão. Não deixava
ninguém sequer errar por conta própria, ele acertava e errava por
todos. Essas coisas, né?
Seu
Janjão teve pena de Turíbio, afinal um bom rapaz, ao vê-lo
desgarrar-se do justo caminho. A mulher de Turíbio foi a primeira
pessoa a procurar seu Janjão para dizer que não concordava com as
bobagens do marido. Um filho de Turíbio fez o mesmo; o outro não
quis julgar o pai, mas declarou pelo jornalzinho de Canela de Boi que
nessas coisas não se metia. A população inteira promoveu solene
desagravo a seu Janjão, convidando Turíbio a calar-se. Turíbio, de
cabeça dura, continuou a dizer coisas sem propósito. E parece que
conseguiu mesmo conquistar a solidariedade do Aleixo alfaiate, um
esquisitão que cortava barato mas tinha poucos fregueses, pois dizem
que cortava mal.
A
adesão de Aleixo não provocou mossa em seu Janjão, que continuou a
lamentar a doideira de Turíbio. Quando se propalou a adesão do
carteiro Nosferato, seu Janjão achou que era tempo de dar um ensino
em Turíbio, menos pelos novos companheiros que viesse a aliciar, do
que em benefício do próprio Turíbio, merecedor de algumas luzes
suplementares que lhe clareassem o pensamento.
O
delegado compareceu à chácara de seu Janjão e prometeu exorcizar o
herege na forma suave do costume. Para maior conforto de Turíbio,
que residia no povoado de Abobrinha d’Água, combinou-se que ele
viria assessorado por quatro praças do destacamento, devidamente
instruídos quanto ao tratamento especial a ser-lhe dispensado.
Turíbio
não pôs objeção ao seu transporte para a cidade. Pediu apenas que
lhe deixassem levar um naco de fumo de rolo de que iria fazendo
cigarros pelo caminho, no de a pé. Os praças concordaram, mas como
Turíbio se demorasse um pouco na feitura do cigarro, que ele acendia
a cada estação do caminho, foi necessário espertá-lo, evitando
delongas. Para essa operação estimulante, o cabo comandante
recomendou a seus subordinados que batessem com a costa dos sabres
nas costas dele. Foi de bom efeito, mas já na parada seguinte
Turíbio demorou um pouco mais a enrolar a palhinha e a acomodar o
fumo picado.
Os
chanfalhos voltaram à atividade, e Turíbio, daí por diante, não
fazia outra coisa senão fumar e apanhar, apanhar e fumar. Suas
costas, através dos talhos da camisa, demonstravam a reiteração
dos golpes, mas Turíbio era fumante inveterado. Que fazer senão
cutucá-lo sempre daquela maneira enérgica, para abreviar a jornada?
A tarde já ia caindo, e nada de aparecer, no horizonte, a torre da
igreja de Canela de Boi.
Foi
quando, numa volta da estrada, a mulher de Turíbio, que vinha da
chácara de seu Janjão, aonde fora apanhar uns trocados, vendo o
espetáculo, alertou os policiais:
— Cês
tão brincando com ele. Bate com o fio, anda, bate com o fio!
Turíbio
levantou a cabeça, ergueu a custo a mão direita num gesto de quem
abomina o supérfluo, e murmurou:
— Não
precisa. Como tá, tá bom.
Carlos
Drummond de Andrade, in 70 historinhas
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