sábado, 13 de janeiro de 2018

Macaco velho não mete a mão em cumbuca

Este ditado, Couto de Magalhães citou-o em nhengatu, explicando: “Entre outros (anexins), citarei o seguinte, que é muito vulgar em todo o Brasil; quando se quer dizer que é muito difícil iludir e enganar ao homem experiente, diz-se no interior: ‘Macaco velho não mete a mão na cumbuca’: é um anexim tupi; eu o encontrei, até rimado, e diz assim: macáca tuiué inti omumdéo i pó cuiambuca opé, anexim que é verbum ad verbum, o mesmo de que nos servimos em português”.
Do Brasil, viajou para Portugal, onde não há cumbuca. “Macaco velho não mete a mão na cumbuca”; Pedro Chaves, Rifoneiro português (Porto, 1945). Afrânio Peixoto ( Miçangas , Rio de Janeiro, 1931) comentou: “O provecto, que não mete a mão no cabaço, como se diria à portuguesa, tem duas explicações. A mais geral é se poder pegar um macaco inesperto, colocando uma espiga de milho dentro de um coco ou cabaça vazia: bugio que aí meter a mão, e apreender a presa, não abrirá mais uma nem soltará a outra ficando prisioneiro: coisa que o macaco velho não faz, desconfiado das cumbucas. Outra explicação diz que, nestas tais, podem aninhar-se víboras e cobras, que picam a mão dos inexperientes indiscretos”.
Este provérbio pareceu-me de origem literária e não fixando um fato verídico. Jamais macaco brasileiro meteu a mão em cumbuca. Nunca passou pela cabeça dos caçadores indígenas tal armadilha à gulodice simiesca. Não existe registro dessa esparrela em fonte impressa de qualquer tempo. O provérbio é conhecido e o motivo ninguém viu. Debalde pesquisei nos livros e nas conversas cinegéticas com profissionais. Parentes meus haviam trabalhado anos e anos no interior do Amazonas, Pará, Acre, cortando borracha, vivendo em acampamentos, barracões improvisados no meio da mata. Sabiam caçar e pescar com os amerabas. Não havia a mais leve notícia do emprego da cumbuca para agarrar macacos.
Em compensação, os exemplos literários são abundantes e alguns antiquíssimos. George Laport recolheu uma variante Bélgica, Le folklore des paysages de Wallonie (Helsinque, 1929). O judeu Eleazar, voltando de Jemelle para Rochefort, passou nas proximidades de um cadafalso de onde pendiam dois enforcados. Ouviu um dizer ao outro que no trou Maulin havia um vaso cheio de ouro e pedras preciosas. Eleazar voou para Maulin e na entrada da caverna percebeu rumores de cachoeiras, ventos, tempestades, gritos de multidão em cólera. Entrou na gruta e encontrou o vaso, repleto de preciosidades, mas com o gargalo tão estreito que apenas permitia a passagem da mão nua. Mergulhou o braço nas joias e moedas de ouro, agarrando-as, mas o vaso começou a descer, atraído por força irresistível sem que o judeu largasse a riqueza empalmada. Gritavam: – Lache ces richeses , tu pourras retirer ta main et t’en aller!, mas Eleazar não queria abandonar a presa cobiçada. O vaso desapareceu no abismo e o judeu com ele.
René Basset (Mille et un contes, récits & légends arabes, I, Paris, 1924) transcreve um episódio de Nozhat El Obadã, resumido por Hammer, constando uma aventura de Djâh’izh na cidade dos H’ims. Encontrou-a revolta pela inquietação coletiva. O filho do emir, filho único, metera a mão num vaso chinês para apanhar nozes e amêndoas e não podia retirá-la sem deixar os frutos. O suplício durava horas e já pensavam em cortar o braço do menino. Todos choravam de desespero. Djâh’izh convenceu o príncipe a soltar as nozes e amêndoas, dando-lhe depois tudo quanto o vaso contivesse. Tal ocorreu e foi considerado salvador, acumulado de presentes ricos e de aplausos pela inteligência incomparável.
Há uma variante num texto chinês, o Po-Yer-King, traduzido do sânscrito de Sanghasina, em 492, pelo religioso hindu Kiéounap’iâ-li (Gunavriddhi), em que um camelo meteu a cabeça num vaso de cereais e para libertá-lo deceparam-na. Chavannes, Cinq cents contes et apologues tirés du Tripitaka chinois (II, Paris, 1911), repete-a. Swynnerton, Indian night’s entertainments (Londres, 1892), dá uma versão hindu em que uma ovelha não conseguiu soltar a cabeça metida numa jarra com manteiga.
A fonte original e longínqua encontra-se no Epicteti dissertationes (I, III, cap. X), em que Flavius Arriano reuniu e condensou as lições do sábio estoico Epicteto, escravo de Epafrotita, liberto do Imperador Nero, no primeiro século da Era Cristã. É a mais antiga referência. Diz Epicteto: “É o que sucede a uma criança que mete a mão num vaso de abertura reduzida para tirar passas e nozes. Com a mão cheia, não a poderá retirar e então chora. Deixa-as ficar, algumas, e soltarás a mão”.
Era o que supunha. Uma imagem erudita que terminou formulada no sertão setentrional do Brasil e num idioma indígena.
Nuno Marques Pereira é autor do Compêndio narrativo do peregrino da América, cuja segunda parte, inédita, terminada na Bahia em 1733, foi publicada pela Academia Brasileira em 1939.
O Peregrino visita a Torre Intelectual onde o guia Belomodo mostra-lhe um quadro: “Vi a uns macacos, com as mãos metidas dentro de buracos feitos em uns cabaços, os quais os levavam arrastando pelos campos, e estradas, e negros atrás deles com bordões e laços de cordas para os enlaçarem e matarem. A interpretação moral é a seguinte: ‘Aqueles macacos ou monos, que vão correndo com as mãos cheias de milho dentro dos buracos feitos naqueles cabaços (que assim os apanham em Cabo Verde), são a representação dos avarentos, e ambiciosos, que por não largarem a presa das riquezas dos bens do mundo, se deixam apanhar, e enlaçar por aqueles negros, que são os demônios, até que os levam para o inferno’”.
Fui perguntar ao escritor Luís Romano de Melo, nascido na Ilha de Santo Antão, em Cabo Verde, o que havia de verdade no símbolo do Peregrino (cap. XI).
Luís Romano confirma. Na Ilha de São Tiago, a única em que os macacos abundam, dando imenso prejuízo às plantações, os negros locais põem amendoins dentro dos cocos, deixando orifício bastante para que passem a mão. Os monos seguram os amendoins e não os largam, guinchando e correndo, atrapalhados com a carapaça do coco, até que são apanhados e mortos a pau.
O Macaco velho não mete a mão em cumbuca é provérbio que não existe em Angola, segundo informa o meu amigo Oscar Ribas, de Luanda.
A técnica será sudanesa ou da África Oriental, mesmo entre os povos bantos. Nunca li menção dessa proeza pelo litoral africano do Atlântico ou do Índico.
O anexim, que Couto de Magalhães divulgou em nhengatu em 1876, é uma composição de fundo cultural que se tornou popular. Já vimos a citação há quase vinte séculos em Roma. A documentação da China, da Índia, do mundo árabe evidencia sua vulgarização pela Ásia. Epicteto teria lançado a imagem na Roma letrada de Sêneca, Lucano, Petrônio. O depoimento de Luís Romano dá verdade à informação de Nuno Marques Pereira, de 1733, dizendo-a um processo de caçar os macacos plutões da Ilha de São Tiago, em Cabo Verde. É quanto me foi possível apurar. Much ado about nothing…
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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