Chegou-me
a última edição da revista Geographic Magazine, toda ela
dedicada ao Evangelho de Judas, que está produzindo uma grande
confusão nos círculos religiosos. E isso porque esses manuscritos
trazem uma versão diferente do que aconteceu: Judas não foi
traidor. Não entendo essa confusão, porque qualquer pessoa
minimamente informada em teologia sabe que Judas não foi um traidor.
Trair é romper um pacto. Mas Judas não rompeu pacto algum. Pelo
contrário: fez cumprir o pacto que lhe havia sido destinado por Deus
Pai desde toda eternidade. Porque Deus, na sua onisciência,
estabeleceu um plano de salvação para os homens que, de outra
forma, iriam para o Inferno. Deus poderia perdoar os seus pecados.
Mas Deus não perdoa. Aquilo a que se dá o nome de perdão é, na
realidade, o pagamento de uma dívida pendente. Deus não perdoa
dívidas. As dívidas têm de ser quitadas. Quitadas com quê? Dizem
as Escrituras que sem sangue não há remissão de pecados. Deus só
aceita pagamento em sangue. Que sangue seria suficiente para pagar os
pecados do mundo? Somente um sangue de valor infinito. Mas, sangue de
valor infinito, só o sangue divino. Para isso veio Jesus – segundo
a teologia –, para derramar o seu sangue de valor infinito que Deus
aceitaria como pagamento. Deus planeja a morte do seu próprio filho
para nos salvar do Inferno. Por que Deus criou o Inferno, isso eu não
sei. Sei que não foi o Diabo, porque Deus, sendo onipotente, não
permitiria que o Diabo tivesse tais poderes. Então, todo o plano
elaborado por Deus Pai desde toda a eternidade dependia de que Jesus
fosse crucificado. Imaginem que ele não fosse crucificado. Que ele
se mudasse para a Grécia e terminasse os seus dias com 88 anos de
idade, como professor de filosofia. A filosofia ganharia, mas a
humanidade iria para o Inferno. Foi assim que Deus, desde toda
eternidade, determinou que um homem chamado Judas entregasse Jesus
para o sacrifício. Judas não tinha alternativa. Ele tinha de ser
fiel àquilo que Deus determinara. Então não foi Judas que entregou
Jesus. Parece assim, vendo-se do lado do tempo. Mas, vendo-se sub
specie aeternitatis , é Deus que está fazendo tudo. Judas foi um
fiel instrumento de Deus para que a salvação se realizasse. Assim,
nenhum outro apóstolo contribuiu tanto para a salvação da
humanidade quanto Judas. Isso já era do conhecimento da Igreja,
desde sempre. Não entendo, portanto, o rebuliço. Proponho a
canonização de Judas.
Rubem
Alves, in Ostra feliz não faz pérola
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