Muitas
das nossas promessas são vãs, mas prometi a mim mesmo que, no
começo deste ano, faria uma faxina no meu escritório, que parece um
almoxarifado com objetos inúteis e papéis esquecidos há muito
tempo.
Com
tanta chuva e umidade desse e de outros verões paulistanos,
encontrei folhas suadas e mofadas de um caderno pautado, onde
rabiscara poemas inacabados, sem data, talvez escritos em outras
cidades, ou durante alguma viagem. Separei e encaixotei livros que
não vou ler; numa gaveta encontrei um cemitério de despertadores
com pilhas oxidadas; marcavam horários diferentes, mas todos pararam
de funcionar minutos depois da meia-noite ou do meio-dia.
Vasculhando
aqui e ali, encontrei numa caixinha de madeira um charuto cubano
datado de 1988 e um bilhete: presente do dr. Eliomar Sampère. Não
me lembro desse doutor. Médico ou advogado? E por que diabo ele me
deu um charuto de presente? Nunca fumei charutos, fossem cubanos,
dominicanos ou baianos.
Separei
centenas de folhas datilografadas: versões de manuscritos inéditos.
Depois juntei outras folhas com anotações de argumentos e ideias
literárias, muitas folhas com planos de aula e traduções, e joguei
tudo na caixa de reciclagem de papel. Foi um ato impulsivo, sem tempo
para arrependimento. A hesitação é a maior inimiga da faxina.
E
essas três caixas de sapatos?
Abri
duas e vi pilhas de cartas de outra era, cartões-postais enviados de
Sitges e Lloret del Mar para Paris e Manaus: cartões manchados de
mofo, grudados uns nos outros. Desgrudei-os com cuidado, eliminei
traças gordas e vorazes, vi fotos belíssimas das duas cidades
catalãs à beira do Mediterrâneo; para evitar crises de nostalgia e
ardor nos olhos, preferi não ler as palavras dos postais, escritas
com a mesma caligrafia. Se ela estiver viva, onde estará morando?
Por uns segundos, fiz perguntas sobre o passado: um modo de ser
nostálgico sem ser sentimental ao extremo.
Na
terceira caixa encontrei o diário da minha segunda viagem ao alto
rio Negro, com fotos aéreas dos grandes lagos, próximos a Iauareté
Cachoeira; lembro que o piloto do helicóptero sobrevoou os lagos e
fez uma rasante na floresta; depois ele disse: “Essa é a última
fronteira virgem do Brasil”. Com o coração na boca, fotografei os
lagos misteriosos e pedi ao piloto para que ganhasse altura, pelo
amor de Deus. Vi fotos dessa viagem, e também duas borboletas cujas
asas bicolores exibem uma geometria complicada e simétrica; penso
que o escritor russo Vladimir Nabokov não conheceu esses espécimes
da última fronteira virgem. São belos, e essa beleza resistiu ao
tempo.
As
duas borboletas foram encontradas mortas por uma índia tucano, e
ainda vejo as mãos abertas me oferecendo os dois lepidópteros que
repousavam inertes na floresta.
E
no fundo da caixa — não sei por que nessa caixa, pois há aí um
salto cronológico — encontrei seis folhas amassadas: a primeira
versão de um longo poema escrito em Barcelona: “Brasileiros
perdidos por aí”.
O
poema não vale grande coisa, vai ver que não vale nada. No meu
íntimo, penso que fiz essa faxina para encontrar esse poema escrito
há mais de trinta anos, quando não sabia o que fazer da vida e, por
isso mesmo, talvez fosse mais feliz.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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