Pensando
naquele tempo, Ulrich poderia hoje sacudir a cabeça, como se lhe
falassem da transmigração de sua alma; sua terceira tentativa era
diferente. Entende-se que um engenheiro se deixe absorver por sua
especialidade, em vez de entregar-se à liberdade e amplidão do
mundo dos pensamentos, embora suas máquinas sejam entregues até nos
confins do mundo; pois precisa tão pouco ser capaz de transportar
para sua alma particular o que há de audacioso e novo na alma de sua
técnica, quanto uma máquina é capaz de aplicar a si mesma as
equações infinitesimais que serviram para a sua criação. Mas da
matemática não se pode dizer isso; nela reside a nova lógica, o
próprio espírito, nela estão as fontes do tempo e a origem de uma
extraordinária transformação.
Se
for a concretização de sonhos ancestrais voar e viajar com os
peixes, atravessar montanhas gigantescas, enviar mensagens com
velocidade de deuses, ver o invisível a distância e ouvi-lo falar,
ouvir falarem os mortos, deixar-se mergulhar em miraculosos sonos
terapêuticos, poder ver como pareceremos vinte anos após nossa
morte, saber em noites estreladas que há milhares de coisas acima e
debaixo desta terra, das quais ninguém outrora tinha conhecimento;
se luz, calor, força, prazer, conforto, forem sonhos ancestrais do
homem — então a pesquisa atual não é apenas ciência mas magia,
uma cerimônia de altíssima força emocional e cerebral diante da
qual Deus desdobra uma a uma as pregas do seu manto, uma religião,
cujo dogma é repassado e impelido pela dura, corajosa e flexível
lógica matemática, fria e afiada como um bisturi.
Na
verdade, não se pode negar que esses sonhos ancestrais, na opinião
dos não-matemáticos, se concretizaram de repente de um modo bem
diverso do que se imaginara. A cometa do postilhão de Munchhausen
era mais bela do que a voz em conserva, industrial; a bota de sete
léguas, mais bela do que um caminhão; o reino de Larino, mais belo
do que um túnel de ferrovia; a mandrágora, mais bela do que um
foto-telegrama; comer o coração da própria mãe para compreender
os pássaros era mais belo do que estudar psicologia animal sobre a
expressividade dos pios. Ganhou-se em realidade, perdeu-se em sonho.
Não nos deitamos mais sob a árvore, espiando o céu entre o dedo
grande do pé e o dedo médio, mas trabalhamos; também não devemos
passar fome nem sonhar demais, se quisermos ser eficientes, mas comer
bifes e fazer exercício. É exatamente como se a velha humanidade
ineficiente tivesse adormecido sobre um formigueiro; quando despertou
a humanidade nova, as formigas tinham entrado no seu sangue, e desde
então ela precisa fazer movimentos incessantes, sem conseguir se
livrar desse chatíssimo ímpeto de fanatismo pelo trabalho.
Realmente não é preciso falar muito a respeito; a maioria das
pessoas sabe perfeitamente, hoje, que a matemática entrou em todos
os campos de nossa vida, como um demônio. Talvez nem todas essas
pessoas acreditem na história do Diabo a quem se pode vender a alma;
mas todas as pessoas que entendem alguma coisa de alma, por serem
sacerdotes, historiadores e artistas, e tirarem boas vantagens disso,
testemunham que foi a matemática que arruinou a alma, que a
matemática é a fonte de uma inteligência perversa que faz do homem
senhor da terra mas escravo da máquina. A secura interior, a
monstruosa mistura de sensibilidade para os detalhes e indiferença
para o todo, o enorme desamparo do ser humano num deserto de
minúcias, sua inquietação, maldade, a incrível frieza do coração,
cobiça, crueldade e violência que caracterizam nossa era, seriam,
segundo esses relatos, resultado dos prejuízos que um aguçado
pensamento lógico traz à alma! E assim, já no tempo em que Ulrich
se tomou matemático, havia pessoas que profetizavam a derrocada da
cultura europeia, porque nenhuma crença, nenhum amor, nenhuma
candura restavam no ser humano; e significativamente todos foram maus
matemáticos na juventude e nos anos escolares. Isso provou para
eles, mais tarde, que a matemática, mãe da ciência natural exata,
avó da técnica, também é mãe ancestral daquele espírito do qual
finalmente brotaram os gases venenosos e os pilotos de guerra.
Só
os próprios matemáticos e seus discípulos, os cientistas naturais,
que sentiam em suas almas tão pouco disso tudo quanto os corredores
de bicicleta, que pisam no pedal e nada veem do mundo senão a roda
traseira do concorrente diante deles, viviam na ignorância desses
perigos. Ulrich, porém, com certeza amava a matemática, por causa
das pessoas que não a suportavam. Era menos um cientista do que
alguém humanamente apaixonado pela ciência. Via que em todas as
questões que esta julga de sua competência, cultiva um pensamento
diverso do das pessoas comuns. Se colocássemos, em lugar de ideias
científicas, ideias filosóficas, em vez de hipótese, experiência,
e em vez de verdade, ação, não haveria obra de cientista natural
ou matemático respeitável que, por sua coragem e força
revolucionária, não superasse em muito as maiores façanhas da
história. Ainda não nasceu o homem capaz de dizer aos seus
discípulos: Roubem, matem, sejam lascivos... nossa doutrina é tão
forte que transforma o estrume desses pecados em claros e espumantes
riachos de montanha; mas na ciência acontece periodicamente que algo
que até então era considerado erro, de repente inverte todas as
ideias, ou quê um pensamento insignificante e desprezado começa a
dominar todo um novo reino de ideias; e esses fatos não são apenas
revoluções, mas constituem um caminho ascendente, como uma escada
para o céu. Na ciência as coisas são tão fortes, superiores e
magníficas como num conto de fadas. E Ulrich sentia: as pessoas
apenas não sabem disso; não têm ideia de como se pode pensar; se
pudéssemos ensiná-las a pensar diferente, também viveriam de modo
diferente.
Certamente
há de se perguntar se o mundo é tão errado que se precise mudá-lo
a toda hora. Mas o próprio mundo já deu duas respostas. Pois desde
que ele existe a maior parte das pessoas foi favorável à mudança,
na juventude. Acharam ridículo que os mais velhos se prendessem às
coisas permanentes e pensassem com seu coração, aquele pedacinho de
carne, em vez de pensarem com o cérebro. Esses jovens sempre
perceberam que a ignorância moral dos mais velhos é uma falta de
capacidade para estabelecer novas ligações, como a habitual
ignorância intelectual, e que a sua própria moral natural é uma
moral de realizações, heroísmo e transformação. Contudo, assim
que chegavam à idade de concretizar, não sabiam mais nada de tudo
aquilo, nem queriam saber. Por isso, muitas pessoas para quem a
matemática ou a ciência natural são profissões julgariam abusivo
decidir-se pela ciência por motivos como os de Ulrich.
Apesar
disso, na opinião dos especialistas não foi pouco o que ele fez
nessa terceira profissão, desde que a abraçou, há anos.
Robert
Musil, in O homem sem qualidades
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