segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Quem somos?

O dia seguinte foi o da partida de Mwadia. Sempre calado, o marido ajudou-a a aparelhar o burro. Madzero também não disse palavra à despedida. Adeuses são assunto de mulheres. De costas viradas, a esposa agachou-se e com o indicador desenhou na areia uma estrela. Era a sua maneira de escrever a promessa: regressaria antes que o desenho ficasse desfeito pelo vento e pela poeira.
Não tomou, de imediato, o atalho em direção ao rio. Ela queria, primeiro, passar por casa do curandeiro Lázaro Vivo. Quando o enfrentou, falou-lhe assim:
É por causa de Zero, meu marido.
E o que há com ele?
Queria que tomasse conta dele na minha ausência.
O curandeiro baixou a cabeça, encheu o peito a alimentar paciência. Ia dizer algo de que se arrependeu. Passou a mão pela testa num gesto redondo antes de prometer que cuidaria do lunático pastor de burros.
Há coisa que nunca entendi: por que é que esse homem foge? Foi crime que ele cometeu?
Não, compadre. É um crime que ele não quer cometer.
Lázaro segurou as mãos de Mwadia, abençoando a viagem e dando-lhe as devidas instruções: — O barco está lá, na curva do rio. Lá dentro está o remo.
E, depois, onde guardo a canoa?
Não se preocupe, ela vem sozinha de volta.
Mwadia sorriu, sem esconder alguma desconfiança. O curandeiro enrugou a voz, realçando o tom de desagrado.
Você está a duvidar, comadre?
Deixe, Lázaro. Não me dê importância.
Há muito que lhe queria dizer isto, Mwadia Malunga: você ficou muito tempo lá no seminário, perdeu o espírito das nossas coisas, nem parece uma africana.
Há muitas maneiras de ser africana.
É preciso não esquecer quem somos...
E quem somos, compadre Lázaro? Quem somos?
Você não sabe?
Mwadia baixou o rosto, sentindo que tinha ido longe de mais. Uma mulher não se confronta daquela maneira, olhos nos olhos, voz na voz. Pediu desculpa, o curandeiro parece nem ter escutado, ocupado em fazer render a despedida.
Você não tem aparecido a entregar cabritos.
Não tem dado.
Ainda tem aí sal e petróleo que é da última venda dos bichos.
Deixe ficar mais uns tempos.
Mas venha estes dias porque eu estou para viajar para o Zimbabwe. Tenho encomendas lá, aquela gente está mal, coitada. Mas ligue-me, minha filha, ligue-me...
Ligar-lhe?
A partir da fronteira tenho rede de telemóvel, você pode-me ligar dos correios de Vila Longe. Se for preciso, é claro.
Não vai ser preciso.
Eu só tenho mais um assuntozito, aliás, um pedido...
Diga o que precisa, compadre Lázaro.
Quero que saiba como é que, lá na capital, se pode meter anúncio na televisão para os meus serviços de curandeiro.
O adivinho fez o que não fazia com mulher alguma: acompanhou Mwadia à porta e ficou a vê-la desaparecer por entre os atalhos de areia. Uma ruga lhe agravava o rosto: saberia a filha de Constança o que a esperava em Vila Longe? Ou recorria à mesma ilusão que produzia com os panos pendurados à porta de sua casa: inventaria vidas para preencher o vazio do seu coração natal?
Mia Couto, in O outro pé da sereia

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