O
dia seguinte foi o da partida de Mwadia. Sempre calado, o marido
ajudou-a a aparelhar o burro. Madzero também não disse palavra à
despedida. Adeuses são assunto de mulheres. De costas viradas, a
esposa agachou-se e com o indicador desenhou na areia uma estrela.
Era a sua maneira de escrever a promessa: regressaria antes que o
desenho ficasse desfeito pelo vento e pela poeira.
Não
tomou, de imediato, o atalho em direção ao rio. Ela queria,
primeiro, passar por casa do curandeiro Lázaro Vivo. Quando o
enfrentou, falou-lhe assim:
— É
por causa de Zero, meu marido.
— E
o que há com ele?
—
Queria que tomasse conta dele na minha
ausência.
O
curandeiro baixou a cabeça, encheu o peito a alimentar paciência.
Ia dizer algo de que se arrependeu. Passou a mão pela testa num
gesto redondo antes de prometer que cuidaria do lunático pastor de
burros.
— Há
coisa que nunca entendi: por que é que esse homem foge? Foi crime
que ele cometeu?
— Não,
compadre. É um crime que ele não quer cometer.
Lázaro
segurou as mãos de Mwadia, abençoando a viagem e dando-lhe as
devidas instruções: — O barco está lá, na curva do rio. Lá
dentro está o remo.
— E,
depois, onde guardo a canoa?
— Não
se preocupe, ela vem sozinha de volta.
Mwadia
sorriu, sem esconder alguma desconfiança. O curandeiro enrugou a
voz, realçando o tom de desagrado.
— Você
está a duvidar, comadre?
—
Deixe, Lázaro. Não me dê
importância.
— Há
muito que lhe queria dizer isto, Mwadia Malunga: você ficou muito
tempo lá no seminário, perdeu o espírito das nossas coisas, nem
parece uma africana.
— Há
muitas maneiras de ser africana.
— É
preciso não esquecer quem somos...
— E
quem somos, compadre Lázaro? Quem somos?
— Você
não sabe?
Mwadia
baixou o rosto, sentindo que tinha ido longe de mais. Uma mulher não
se confronta daquela maneira, olhos nos olhos, voz na voz. Pediu
desculpa, o curandeiro parece nem ter escutado, ocupado em fazer
render a despedida.
— Você
não tem aparecido a entregar cabritos.
— Não
tem dado.
— Ainda
tem aí sal e petróleo que é da última venda dos bichos.
— Deixe
ficar mais uns tempos.
— Mas
venha estes dias porque eu estou para viajar para o Zimbabwe. Tenho
encomendas lá, aquela gente está mal, coitada. Mas ligue-me, minha
filha, ligue-me...
—
Ligar-lhe?
— A
partir da fronteira tenho rede de telemóvel, você pode-me ligar dos
correios de Vila Longe. Se for preciso, é claro.
— Não
vai ser preciso.
— Eu
só tenho mais um assuntozito, aliás, um pedido...
— Diga
o que precisa, compadre Lázaro.
— Quero
que saiba como é que, lá na capital, se pode meter anúncio na
televisão para os meus serviços de curandeiro.
O
adivinho fez o que não fazia com mulher alguma: acompanhou Mwadia à
porta e ficou a vê-la desaparecer por entre os atalhos de areia. Uma
ruga lhe agravava o rosto: saberia a filha de Constança o que a
esperava em Vila Longe? Ou recorria à mesma ilusão que produzia com
os panos pendurados à porta de sua casa: inventaria vidas para
preencher o vazio do seu coração natal?
Mia
Couto, in O outro pé da sereia
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