sábado, 2 de dezembro de 2017

O pôr-do-sol

[A cabine; junto às janelas da popa; Ahab, sentado sozinho; e olhando para fora.]
Deixo uma esteira inquieta e branca; águas pálidas; faces mais pálidas, por onde navego. Os vagalhões invejosos crescem pelos flancos para cobrir minha trilha; e que assim seja; mas primeiro eu passo.
Lá longe, na borda da taça sempre cheia, as ondas quentes enrubescem como o vinho. O rosto dourado afunda no azul. O sol mergulhador – mergulha lentamente desde o meio-dia – desce; meu espírito começa a escalada! Fatiga-se com sua colina interminável. Será, então, demasiado pesada a coroa que uso? Essa Coroa de Ferro da Lombardia. Contudo, cintila com suas várias gemas; eu, que a uso, não sei o alcance de seus lampejos; mas sinto obscuramente que o que uso é fascinante e desconcerta. É de ferro – eu sei –, não é de ouro. Está rachada, também – eu sinto; a borda pontiaguda me atormenta tanto que meu cérebro parece se bater contra o sólido metal; sim, crânio de aço, o meu; do tipo que não precisa de elmo na mais sangrenta batalha de cérebros!
Um calor árido sobre a minha fronte? Oh! Foi-se o tempo em que a alvorada nobremente me animava, e o poente me acalmava. Não mais. Esta luz encantadora não me ilumina; todo o encanto significa angústia para mim, porque nada posso apreciar. Dotado da percepção mais aguda, falta-me a humilde capacidade de apreciar; amaldiçoado, da maneira mais sutil e maligna! Amaldiçoado em pleno Paraíso! Boa noite – Boa noite! [Acenando com a mão, afasta-se da janela.]
Não foi uma tarefa tão complicada. Esperava encontrar alguns teimosos, pelo menos; mas minha correia dentada se encaixa em todas as suas variadas polias; e elas giram. Ou, se quiserdes, como outros tantos montes de pólvora, eles todos estão diante de mim; e sou o fósforo. Como é duro! Que, para incendiar os outros, o fósforo se consuma. O que ousei, desejei; e o que desejei, fiz! Pensam que sou louco – Starbuck pensa; mas sou demoníaco, sou a própria loucura enlouquecida! A loucura varrida, que só se acalma para entender a si mesma! Dizia a profecia que eu seria destroçado; e – é isso! Perdi esta perna. Agora profetizo – mutilarei meu mutilador. E, assim, profeta e executor serão um só. É mais do que vós, grandes deuses, jamais fostes. Faço pouco e rio de vós, jogadores de críquete, pugilistas, surdos Burkes e cegos Bendigoes! Não farei como as crianças quando falam com os valentões, – Vá procurar alguém do seu tamanho; não me espanque! Não, vós me derrubastes, e estou em pé outra vez; mas vós fugistes, vós vos escondestes. Saí de trás de vossos sacos de algodão! Não tenho uma arma comprida para vos alcançar! Vinde, Ahab vos saúda; vinde para ver se podeis me desviar! Desviar-me? Não, não me podeis desviar, a não ser que vos desvieis antes! Eis aqui o homem. Desviar-me? O caminho de minha resolução é feito com trilhos de ferro, onde minha alma está encarrilhada. Sobre desfiladeiros insondáveis, através dos interiores áridos das montanhas, sob o leito das torrentes, avanço infalivelmente! Nada é obstáculo, nada me detém nessa estrada de ferro!
Herman Melville, in Moby Dick

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