sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Memórias do contabilista Pedro Inácio

Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis.
(Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas)

Se te fatigaste em seguir, correndo, os que iam a pé, como poderás competir com os que vão a cavalo? (Jeremias, XII, 5)

1. Ah! o amor. O amor de Jandira me custou sessenta mil-réis de bonde, quarenta de correspondência, setenta de aspirina e dois anos de completo alheamento ao mundo. Fora cinquenta por cento de meus cabelos e as despesas com os clínicos que, erroneamente, concluíram ser hereditária a minha calvície.
Mas os médicos que procurei nada entendiam de alma e nem eu, tampouco, conhecia suficientemente a minha família.
Só mais tarde descobri o erro deles. Foi Dora, uma espanholinha cor de lírio, que gostava de dança clássica e mascar chicletes, quem me revelou a origem de meu mal.

2. Como os bons remédios, Dora me ficou barato. Algumas dúzias de chicletes, cinco bilhetes de festivais de caridade, onde — devo confessar — ela dançou divinamente; uma caixa de orquídeas e apenas dois envelopes de aspirina. Tudo por oitenta mil-réis.
Em troca dessa ridícula quantia, fiquei conhecendo a história de meus ancestrais, o motivo da minha irresistível atração pelo amor e pela contabilidade.
Antes não soubesse que o meu sentimentalismo era hereditário! Não teria adquirido essa obsessão de consultar alfarrábios e viver vasculhando árvores genealógicas.
Deste-me, inefável Dora, o ofício mais cansativo do mundo.
3. Porém a minha mania de escrever não nasceu dos movimentos graciosos e harmônicos do corpo de Dora. Não. Teve origem no meu noivado com Aspásia. (Como é dispendioso um noivado! Até hoje não sei em quanto me ficou esse meu desafortunado romance.) Ou, melhor, a culpa também não coube a minha noiva, como por muito tempo me pareceu. Mas a certo antepassado, um alentejano beberrão, que chegou a escrever dez volumes sobre a utilidade das bebidas espirituosas e seis sobre a não hereditariedade do vício alcoólico.
Para maior entendimento destas memórias, devo ainda esclarecer que esse meu ancestral, José Antônio da Câmara Bulhões e Couto, morreu de desgosto ao descobrir que dois de seus bisavós tinham falecido em consequência de cirrose hepática. Não resistiu à derrocada de suas teorias e criou, assim, uma lamentável exceção entre os da minha honrada estirpe: foi seu único membro que não desapareceu vitimado pelo amor.

4. Quem chegar a ler estas páginas poderá pensar que estou exagerando. Todavia, incorrerá em erro. Os desatinos amorosos dos meus antepassados chegaram a tal ponto que um deles, Basílio da Câmara Bulhões e Couto, piedoso bispo, cujos milagres cronistas portugueses, os mais sérios, registram, faleceu em virtude de uma paixão. Isso se deu quando, vindo das Índias, de volta a Portugal, o navio em que viajava foi assaltado por piratas chineses, que levaram a tripulação e passageiros para a China. Nesse país, o virtuoso bispo, por uma dessas enigmáticas circunstâncias que só o diabo pode explicar, veio a se apaixonar por uma chinesa excepcional. Excepcional porque comia arroz com as mãos, em vez de com os clássicos pauzinhos.
Pobre bispo! Ele que tantos milagres fizera não conseguiu que a anticonvencional chinesinha lhe dedicasse uma parcela sequer de seu meigo coração oriental.
E numa tarde brumosa — a descrição vai por conta da minha imaginação —, entre juncos, papoulas e flores de lótus, faleceu murmurando o nome da paganíssima Lu-chu-tzé. (Que em paz esteja a sua alma, que a do meu tio padre por certo está.)

5. Mas de todos os Bulhões o mais notável foi o meu tataravô Pedro Inácio, cujo nome herdei.
Um lírico, o meu tataravô Pedro Inácio! Usava fraque, monóculo, e todas as tardes reunia os escravos da fazenda para ouvi-lo recitar os clássicos franceses. E tamanha era sua estima pelas artes que a seus escravos deu nomes de pintores, músicos e poetas.
Quando moço, foi o maior conquistador de nossa terra. Casado, cedeu o lugar a seu irmão Acácio.
A morte da esposa, porém, fez renascer nele a chama amorosa da mocidade. Sem atentar para a velhice já se aproximando, vivia a peregrinar pelas fazendas de seus filhos e sobrinhos, tentando em vão conquistar noras e sobrinhas.
Certa ocasião, pernoitando em uma fazenda de parentes, onde moças bonitas e alegres passavam as férias, coincidiu que o quarto dado ao meu avô Pedro Inácio ficasse junto de um dos ocupados por aquelas. E como as paredes dos aposentos não chegassem até o teto, alta noite, ele as escalou. Contudo, não logrou sucesso em seu intento. Não contara com uma despensa estreita que separava seu quarto do das moças.
No dia seguinte, encontraram-no morto, vitimado por uma fratura na espinha. Morrera gloriosamente, buscando o amor, entre queijos e cebolas.

6. Seu irmão Acácio, entretanto, não se casou. Tinha um aguçado instinto de viajante que o levava a perseguir as mulheres aonde quer que elas fossem.
Em determinada época, passou pela cidade uma companhia de óperas, cuja prima-dona distinguia-se pelo encanto e invulgar beleza. E lá se foi o tio Acácio, companhia e tudo.
Percorreu vários países, assistiu a mil e tantas representações, aplaudindo com entusiasmo crescente a sua bela amante.
Mas como lhe acabasse o dinheiro e já se tornassem raros seus presentes em moeda e joias, a mulher abandonou-o em Roma. Lá morreu, não se sabe se de fome ou paixão. Os da minha família preferem que em razão desta última, pois Acácio é para eles um belo exemplo de fidelidade sentimental. Além de belo, o único que conheceram entre seus componentes.

7. Tio Paulo, o mais moço dos irmãos do avô Pedro Inácio, preferia jogar damas, contar anedotas picantes e dar beliscões nas nádegas das escravas. Por limitar suas conquistas ao elemento africano e a sua cultura a histórias frascárias, foi sumariamente banido da crônica de nossa família.
Todavia, não se envergonharam os seus irmãos, quando da partilha da herança paterna, de o lesarem, dando-lhe, em vez das melhores terras, as melhores negras.
Nem por isso sentiu-se espoliado e repetia sempre aos que lhe insinuavam o contrário:
Sou grato a meu pai pelo gosto apurado em escolher as escravas e a meus irmãos por não lhe reconhecerem essa qualidade.
Atacado por terrível moléstia (por que não dizer lepra?), que aos poucos lhe arruinava o físico e já sem recursos para tratar-se, preferiu alforriar as escravas a vendê-las. Estas, por seu turno, não o abandonaram e até a sua morte proveram o sustento dele.
Próximo à agonia, assistido pelas devotadas mulheres, balbuciava continuamente:
O outro mundo não me assustaria tanto se me garantissem ser negras as onze mil virgens de Maomé.

8. Deus meu! Não terminarei minhas memórias. O homem põe e seus antepassados dispõem. Acabo de fazer uma descoberta espantosa: não sou filho de meu pai, nem de minha mãe!
Tomei conhecimento dessa incômoda revelação por acaso, dias atrás, quando discutia as minhas teorias sobre a hereditariedade com o médico que assistiu o parto da minha suposta mãe. Disse-me, num momento em que ele não conseguia contestar meus argumentos, que eu apenas substituíra um aborto.
Como a minha mãe verdadeira não tivesse sobrevivido ao meu nascimento — explicou-me o médico — e fosse difícil saber, entre tantos homens que frequentavam a sua casa, qual seria meu pai, trocaram-me pelo feto da minha mãe adotiva.
Maldita revelação! Agora não posso mais saber a causa da minha vocação para o amor e a razão da minha calvície. E só de pensar que nos meus estudos genealógicos gastei seis contos, duzentos e trinta e cinco mil e quinhentos réis, sinto vontade de destruir o mundo.
Resta-me somente um consolo: a queda das minhas teorias não beneficiará meus clínicos. Entre os dez indivíduos que o doutor Damião afirma estar o meu pai, não há um calvo sequer.

9. Acabo de me reconciliar com o mundo. Dora, que no início destas memórias, erradamente, julguei ter-me custado apenas oitenta mil-réis (não sabia naquela época em quanto ficariam as minhas pesquisas genealógicas), surgiu ontem, aos meus olhos, numa esquina. Há dois anos não a via. E foi com surpresa que a encarei, vendo-a na minha frente, a ostentar uma gordura exagerada naquele corpo que um dia pertencera a um cisne.
Não pude conter a piedade ao vê-la gorda e flácida, sem a antiga harmonia de movimentos, sem a graciosidade de formas. Nem mesmo no olhar trazia aquela ternura de lírios, que tanto bem fazia aos que dela se aproximavam.
Conversamos pouco, o bastante para saber que retornava de um sanatório, onde deixara encerrado todo o sonho de levar a existência bailando para os homens.

10. Ao chegar a casa, senti remorsos de não ter consolado Dora, de não lhe ter falado ternamente que também sou demasiado infeliz.
Mas durante os poucos minutos que conversamos, nada disso pude dizer-lhe, porque o esforço de conter, a todo custo, uma pergunta que desejava fazer-lhe não me permitiu. Foi uma tarefa dura a de refrear minha curiosidade em saber quanto lhe custara a estada no sanatório, talvez bem mais do que meus estudos de genealogia.
Murilo Rubião, in Obra Completa

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