quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Copa 1958


Antes de 1958, Ari Barroso implicava muito com o futebol do Garrincha.
Dum episódio característico me lembro muito bem. Ari transmitia na tevê um jogo do Botafogo e dizia pausado: “Garrincha com a bola. Vai driblar. É claro. Vai driblar de novo. Vai perder a bola. Olha ali, um saçarico pra cá, outro pra lá. Garrincha passa pelo adversário. Assim também não é possível. Vocês estão vendo? Garrincha vai driblar de novo. Vai perder. Por que ele não centrou logo? Claro que vai perder. Gol de Garrincha.” A última frase veio seca e mal-humorada: também o Mi fora driblado lá na tribuna.
Principalmente por causa de Garrincha, ele e eu pegávamos discussões animadíssimas, que não só acabavam alegremente: já eram entremeadas de brincadeiras. Uma vez, no aceso da paixão, apelei para a linha dura e lhe disse a sentença fatal: “Você não entende nada de futebol!” Mi, apanhado de surpresa, achou engraçadíssima minha (falsa) opinião e ficou sacudido por tremores de riso durante mais de meia hora.
Aí veio a Copa da Suécia. Ouvi as irradiações num bar de Ipanema na companhia de amigos. Ari ainda não dera as caras. João Condé, tendo aparecido apenas no jogo com a Inglaterra (0 a 0), fora proibido de voltar. Terminada a partida com os suecos... Bem, não é difícil imaginar. Um senhor desconhecido, que ouvira o jogo a suar frio e extremamente pálido, como se fora ao vivo a descrição do Apocalipse, continuava em transe, hirto e bestificado, enquanto a turma o arrastava como um robô pela dança carnavalesca e enfiava-lhe pela boca paralisada grandes goladas de uísque. Darwin Brandão parou o bonde no peito e ofereceu uísque a motorneiro, condutor e passageiros. Os dois primeiros desceram para a confraternização, mas recusando a bebida: já vinham do Bar Vinte com uma garrafa de pinga. Mal terminado o jogo (tudo acontece em Ipanema), surgiu também no bar uma duquesa da França.
Uma duquesa no duro, dessas que ainda têm castelo, e cujos antepassados foram protegidos ou perseguidos por Luís XI. Chegara há pouco tempo da França e não falava português. Mas o repórter Nestor Leite, também conhecido por Boca Negra, há muitos anos que “tribo” na Amazônia e se instalou no Rio. Nestor entendeu perfeitamente o que a duquesa dizia: tinha torcido pela França, évidemment, évidemment... Tendo a França perdido, passara a torcer pelo Brasil, évidemment... Nestor abraçou a duquesa com uma ternura derramada de gratidão e comandou imediatamente uma champanha. A duquesa afirmou com veemência que preferia um chope, e todos nós acreditamos, menos o Nestor. Veio a champanha, muito nacional e meio morna, sempre sob os protestos da elegante e simpática duquesa.
Não sei se o leitor se lembra duma fabulosa champanha que jorra numa cena do filme Les Enfants du Paradis. Pois a do Nestor foi muito mais fabulosa: jorrou com uma força de jato de poço de petróleo, e inundou os cabelos tratados, o vestido de seda, a alma nobre da duquesa. Foi uma festa. Raimundo Nogueira, Haroldo Barbosa e Fernando Lobo tinham fugido da raia, por prudência de ordem coronária, e pescavam sem rádio na Barra da Tijuca. Ouvindo o foguetório, vieram em desabalada para Ipanema. Invadiram o bar com quilos de talco (reminiscência do carnaval pernambucano).
Uma cortina branca envolvia tudo e todas as pessoas quando ouvi uma voz que vinha da porta a clamar meu nome e sobrenome. Era o Ari, que continuou à porta gesticulando.
Atenuada a cerração de talco, vi que a sua expressão era dessa rara plenitude que limpa do rosto humano o desencanto, a decepção, o medo.
Ainda na porta, ele gritava para mim, escandindo as sílabas a seu modo: - Estou aqui para penitenciar-me! É o maior! É o maior! Que beleza, meu Deus! Que beleza! O Garrincha é o maior gênio que já houve neste país! Que beleza! Que beleza!!
Paulo Mendes Campos, in O gol é necessário

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