O
padrinho foi ao colégio, na Muda, e tirou Guilherme para passear.
Olhos de inveja do irmão, também interno, mas sem direito a sair,
porque seu comportamento era do tipo “deixa muito a desejar”, na
linguagem do padre-reitor. Desejar o quê — ele não sabia. Sabia
que o irmão ia gozar a vida lá fora, ar, ruas, cinemas, tudo aquilo
que vale a pena, enquanto ele, Gustavo, continuaria mergulhado no
mar-morto do pátio, dos corredores, do nhe-nhe-nhem cotidiano.
Guilherme
tinha planos para a emergência, e todos se resumiam em tirar o
máximo possível da liberalidade do padrinho.
— O
senhor me dá um presente de aniversário?
— Seu
aniversário é daqui a oito meses.
— É,
mas…
— Bem,
eu dou.
O
padrinho propôs-lhe um blusão alinhado, mas ele entendia que roupa
é obrigação de pai e mãe — não vale. Livro também não. Nas
férias aceitaria a coleção de science fiction, mas em pleno
ano letivo, para descanso de tanta labuta no campo da ciência e das
letras, o que lhe convinha mesmo era um brinquedo bem legal.
—
Brinquedo? Mas você pode brincar com
essas coisas no colégio?
—
Posso.
Talvez
não pudesse, mas isso eram outros quinhentos. Foram à loja de
brinquedos. O problema era escolher entre o trem elétrico, o foguete
cósmico, a caixa de aquarela, o equipamento de Bat Masterson, o
cérebro eletrônico e outras infinitas tentações.
—
Vamos, escolhe — dizia o padrinho,
disposto a tudo, menos a esperar.
Ele
comparava, meditava, decidia, arrependia-se. E como era impossível
levar todos os brinquedos que o atraíam, pois cada um tinha seu
inconveniente, que era não ter as qualidades dos demais, repeliu
todos:
— Quero
aquela gaitinha. Aquela verde, ali.
O
padrinho fez-lhe a vontade, sem compreender. Uma bobagem de oitenta
cruzeiros!
No
colégio, Gustavo queria saber. E sabendo, escarneceu:
— Você
é mesmo uma besta. Tanta coisa bacana para escolher, e vem com essa
gaitinha mixa.
Guilherme
quis provar que não era mixa coisa nenhuma, tinha um engaste de
pedrinhas faiscantes, som espetacular. O irmão voltou-lhe as costas,
com desprezo:
—
Palhaço!
Ah,
se fosse com ele… E Gustavo passou a comportar-se melhor, na
esperança de também ir à cidade.
Um
dia o padrinho dele apareceu, saíram. Aplicou o golpe do
aniversário. O padrinho, igual a todos os padrinhos do mundo, pensou
em oferecer-lhe um blusão alinhado. Recusou, e foram parar na loja
de brinquedos.
Gustavo
olhou superiormente para o monte de coisas que derrotara Guilherme.
Sabia escolher, e preferiu logo a metralhadora japonesa. Mas pensou
que se cansaria depressa do seu papoco; trocou-a por um marciano com
bateria; os marcianos passam de moda; quem sabe se esse laboratório
de química? Não, chega a química do programa. Foi escolhendo,
refugando, substituindo. O padrinho consultava o relógio: “Escolhe,
menino!”. Era preciso escolher para sempre. E nada lhe agradava
para sempre, nada valia verdadeiramente a pena. Com angústia
lembrou-se do irmão, procurou aflito uma coisa no milheiro de coisas
e, apontando-a, murmurou:
— Quero
aquela gaitinha.
Carlos
Drummond de Andrade, in 70 historinhas
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