O
escritor ficou surpreso quando soube que seu livro seria traduzido na
Bélgica, e preocupadíssimo quando soube que a tradutora do livro
iria procurá-lo. Como, procurá-lo? Ela viria ao Brasil, era isso?
Quando? Por quê?
A
partir do dia em que se confirmou que a tradutora iria procurá-lo o
escritor não falou em outra coisa. Dizia aos amigos que não
conseguia dormir, pensando na chegada da belga.
— O
que essa mulher quer comigo?
E
por que vir ao Brasil? Se tinha alguma dúvida sobre o livro, por que
não usar o e-mail? Ela usara o e-mail para anunciar que viria. Por
que não usar para dizer o que queria?
Aos
poucos o escritor foi ficando com raiva. Da tradutora belga, da
editora belga, do seu próprio livro. Pra que traduzir aquilo? Era um
romancezinho de nada. No Brasil ninguém lera. E ninguém conhecia a
tal editora. Por que não o deixavam em paz?
Os
amigos argumentavam que era uma boa ser traduzido. Ele passaria a ser
conhecido internacionalmente.
— Eu
não quero ser conhecido!
E
que língua se falava na Bélgica, afinal?
—
Francês, no sul. No norte é uma espécie
de holandês.
Aquilo
só aumentou a irritação do escritor. Ele não sabia nem em que
língua seria traduzido. Francês ou uma espécie de holandês? Os
e-mails da tradutora eram em inglês. Ela se referira ao livro como
“your marvelous book”. O que seu livro tinha de maravilhoso? Ela
não o entendera, era isso. Ela o interpretara erradamente. Vira
símbolos onde não havia símbolos. Mensagens cifradas onde não
havia nenhuma. E vinha para descobrir o que ele “realmente”
queria dizer com seu livro de nada. Era isso. Olhos nos seus olhos.
A
belga vinha para olhar dentro da sua alma. E ele não queria ninguém
olhando dentro da sua alma.
O
escritor pensou em mandar um e-mail dizendo: “Epidemia de malária.
Estou de cama, sem poder receber ninguém. Não venha.” Mas
desistiu. E resolveu apelar para o seu amigo Romualdo. O Romualdo era
dentista e, ao contrário dele, tinha pinta de intelectual. Usava
cachecol no inverno e no verão. Fumava cachimbo. Receberia a belga
como se fosse o escritor. Desnudaria a sua alma para a belga. E
concordaria com todas as suas interpretações.
Romualdo
topou. Só pediu que o escritor fizesse um rápido resumo do livro,
que ele não lera.
— Eu
sei — disse o escritor. — Ninguém leu.
Romualdo
e a belga encontraram-se durante uma semana. No apartamento dele,
onde a belga estranhou a ausência de livros.
— Não
leio nada — explicou Romualdo, no pouco inglês que o cachimbo
deixava passar — para não ser mal influenciado.
Quando
voltou para casa a belga mandou um e-mail dizendo que adquirira uma
perspectiva completamente nova do livro depois de conversar com o
autor, principalmente das alusões dentárias, que ela não pegara na
primeira leitura. Até hoje o Romualdo se recusa a contar ao escritor
o que disse para a tradutora e o escritor só saberá o resultado da
conversa dos dois quando ler a tradução belga.
Se
não for numa espécie de holandês, claro.
Luís
Fernando Veríssimo, in Diálogos impossíveis
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