sábado, 18 de novembro de 2017

Sophie, a encoberta


Nos tempos do reality show, dos blogs e das celebridades, a francesa Sophie Calle – autora de Histórias reais (Agir, tradução de Hortência Santos Lencastre) – inverte as expectativas de um mundo que se desnuda e faz da escrita um segredo e, da fotografia, um véu.

Seu livro é uma reunião de histórias pessoais a que se associam fotografias também pessoais. Nada mais frustrante, no entanto, para quem busca intimidade e escândalo. Ou talvez não, se considerarmos que o íntimo se refere não ao aparente, mas à esfera secreta das essências; e que, em sua origem latina, escândalo significa também obstáculo, ou armadilha.

Como fotógrafa, Sophie se comporta como uma escritora – sabe que as imagens são sinais arbitrários, condenados a roçar o que lhes foge. Como escritora, é uma fotógrafa – ciente de que as palavras estão encobertas por uma fina película, que, uma vez arrancada, expõe um vazio insuportável.

Do jogo entre palavras e imagens, Sophie Calle tira livros assombrosos, como este Histórias reais. Breves histórias, sob as quais abismos se escondem. Aos 11 anos, ela e a irmã Amelie praticam pequenos furtos nas lojas de departamentos. Para inibi-las, a mãe inventa que um policial descobriu tudo. Desistem dos furtos, mas (efeito da ficção sobre o real) põem-se a procurar o policial inexistente. Não o encontram e, para se consolar, furtam um par de sapatos vermelhos. Amelie fica com o pé direito, Sophie com o esquerdo. Precisavam correr mais esse risco: o medo é tudo o que lhes resta do falso policial.

O vermelho dos sapatos reaparece em uma foto da própria Sophie. Em seu pescoço, vinda do nada, aparece uma linha vermelha. Mesmo com o defeito (ou por causa dele), ela guarda a fotografia. Duas semanas depois (a arte antecipando o real, ou melhor: transcrevendo-o), um homem tenta estrangulá-la na rua. De novo, o falso encobre o verdadeiro.

Um de seus sonhos era receber uma carta de amor. Não pensa duas vezes: encomenda-a a um escritor de cartas. A falsa carta lhe custa cem francos. Ao lê-la, esbarra na frase verdadeira: “... sem fazer um só gesto, segui você por toda a parte”. Fala das ideias, que nunca a abandonam.

A falsificação lhe serve uma segunda vez. Quando se casa – em uma cerimônia improvisada em Las Vegas –, não tem tempo para o ritual vestido de noiva. Muitos anos depois, reúne a família para uma cerimônia falsa, só para poder usar o vestido. Potência da ficção: “Eu coroava com um falso casamento a história mais verdadeira da minha vida”.

Sophie se lembra de uma tia-avó, Valentine, que, aos 100 anos de idade, lhe pediu que o anúncio de sua morte se resumisse a uma frase: “Ela fez o que pôde”. Também a escrita faz o que pode – e sempre fica pelo meio do caminho. As coisas escapam das palavras. Mas, em vez de enfraquecê-la, essa autonomia fortalece a escrita.

Muitas vezes, uma frase gruda na alma e sela um destino. Aos 30 anos, quando recusa o beijo de um desconhecido, ouve a agressão: “Não faz mal, você come como um porco”. Estavam em um churrasco, Sophie passara a maior parte do tempo grelhando salsichas e servindo os convidados. Não importa: a frase se sobrepõe ao real e o engole. “Não lembro mais nada desse indivíduo, mas ele continua sentado à minha mesa.” Palavras não morrem.

Para desfazer uma palavra, Sophie nos mostra, só mesmo outra palavra. O pai achava que a filha tinha mau hálito e a encaminha a um médico. Ao entrar no consultório, percebe que está diante de um psicanalista. “Houve um engano”, diz. “Meu pai me mandou a um clínico geral.” A potência das palavras está em nossa capacidade de contorcê-las. O psicanalista pergunta: “Você sempre faz o que seu pai manda?”. Naquele momento, empurrada pela força da língua, Sophie inicia sua análise.

Outras vezes, as palavras – fracassadas – registram apenas uma ausência. Uma moça, Mâkhi lhe pede que visite o apartamento de duas mulheres, recém-falecidas, que a criaram. Aceita o papel de substituta. Vai e fotografa a casa – fotografa o medo de Mâkhi. Missão cumprida, Sophie pede para guardar uma agenda das mortas. Na página referente ao Natal de 1980, encontra a anotação: “Não vi nada – ninguém”. E em 1981: “Natal – nada”. As palavras são véus; mas, se as erguemos, nada aparece.

Sempre desejou receber uma carta de amor; o marido lhe negava. Um dia, descobre uma carta de amor entre as coisas do marido. Não está endereçada a ela, mas a certa H. Não pensa duas vezes: rouba a carta. Risca o H. e coloca em seu lugar um S. A falsificação se impõe como uma verdade. “Essa carta de amor passou a ser a que eu nunca recebi.”

Sophie nos mostra que as palavras podem tudo. E, no entanto, esse tudo é quase nada. Um dia, durante uma briga, o marido lança objetos sobre ela. Como uma cicatriz, fica um buraco na parede. “Foi então que entendi que era preciso fazer a única coisa que ele pedia: ouvi-lo.” Fazem as pazes. O que o marido tinha a dizer? Provavelmente nada – o que não diminuía seu desejo de escuta. Na parede, fica o buraco que representa esse desejo. Sobre ele, Sophie dependura uma fotografia de seu casamento.

Também o leitor de Histórias reais não deve se iludir: o livro nada lhe revelará. Mas é preciso ler esse rombo. A própria Sophie recorda de um amigo que, na arena de Sevilha, caiu fulminado por um touro. Uma chifrada no coração. O relatório médico registra: “Seu coração estava aberto em dois, como um livro”. Também o livro de Sophie é um coração que se rasga.

Quanto mais avanço, mais distante Sophie está. Como leitor, repito uma experiência que ela mesma viveu. Um dia, um amante resolveu abandoná-la. No último encontro, deu-lhe de presente um segredo. Uma história terrível, confiada só a ela, e a mais ninguém. Sophie não nos revela esse segredo – ela o esconde. Do segredo, resta o véu: “No mesmo instante em que me privava de seu amor, aquele homem me presenteava com a última prova de nossa intimidade”.

Ao fim da leitura, um segredo nos é confiado. Barrada de sua história, a própria Sophie o ignora. O livro é esse segredo. E esse segredo é tudo.

José Castello, in Sábados inquietos

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