quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Porra, isso me encanta

Naqueles dias, eu não conhecia Dean tão bem quanto agora, por isso a primeira coisa que fiz foi procurar Chad King. Telefonei para a casa dele, falei com sua mãe — ela disse: — Alô, Sal, o que você está fazendo em Denver? — Chad era um garoto magro e loiro, com uma cara esquisita De bruxo-cientista, que parecia apropriada para um sujeito interessado em antropologia e índios pré-históricos. Seu nariz se projetava suave, quase docemente, sob a chama dourada de seus cabelos; ele possuía a graça e a beleza de um desembaraçado habitante do oeste, que joga um pouco de futebol e sempre dançou em motéis de beira de estrada. Quando ele falava, um trêmulo som metálico ecoava: — O que eu sempre gostei nos índios das planícies, Sal, é a maneira como eles ficam terrivelmente envergonhados, depois de ostentarem seus inúmeros escalpos. Na Vida no oeste selvagem, de Ruxton, há um índio que fica completamente vermelho de vergonha por possuir muitos escalpos e correr como um louco pelas planícies, para se vangloriar de suas proezas. Porra, isso me encanta.
A mãe de Chad o localizou na sonolenta tarde de Denver, trabalhando sobre as cestas confeccionadas pelos índios, no museu local. Liguei, ele veio e me apanhou no seu velho Ford cupê, o mesmo que usava para viajar pelas montanhas, onde escavava à procura de objetos indígenas. Ele entrou na rodoviária vestindo jeans, e com um sorriso de orelha a orelha. Eu estava sentado sobre meu saco de viagem, no chão, conversando justamente com o mesmo marinheiro que estiver a comigo na rodoviária de Cheyenne, perguntando para ele o que havia acontecido com a loira. Ele estava de saco tão cheio, que nem me respondeu. Chad e eu entramos em seu pequeno cupê, e a primeira coisa que ele tinha a fazer era arranjar uns mapas na prefeitura. Depois, queria rever um velho professor, e por aí afora, enquanto tudo o que eu desejava era beber algumas cervejas. E, no fundo de minha mente. Tinha um desejo ardoroso, saber por onde andava Dean, e o que ele estava fazendo. Por alguma razão indefinida, Chad tinha decidido não ser mais amigo de Dean, e nem sequer sabia onde ele morava.
Carlo Marx está na cidade?
Sim. — Mas Chad também já não falava mais com ele. Isso significava o início do afastamento de Chad King de nossa turma. Eu deveria tirar uma soneca na casa dele, aquela tarde. Havia notícia de que Tim Gray tinha um apartamento esperando por mim na Colfax Avenue, e que Roland Major já estava lá, aguardando que me juntasse a ele. Percebi uma espécie de conspiração no ar, e essa conspiração punha em confronto duas facções da gangue: Chad King e Tim Gray e Roland Major, junto com os Rawlins, dispostos a ignorar Dean Moriarty e Carlo Marx. Eu estava estilhaçado bem no meio desse curioso confronto.
Era uma guerra com conotações sociais. Dean era filho de um bêbado, um dos vagabundos mais trôpegos da Larimer Street, e ele próprio, na verdade, tinha crescido na Larimer e nas imediações. Estava habituado a defender seu pai em juízo, depondo nos tribunais aos seis anos de idade para vê-lo em liberdade. Costumava esmolar em frente aos becos da Larimer, e entregava sorrateiramente o dinheiro ao pai, que o aguardava entre garrafas quebradas, esparramado ao lado de um velho companheiro. Então, quando cresceu, Dean começou a frequentar os salões de bilhar de Glenarm; bateu o recorde de carros roubados em Denver, e foi parar num reformatório. Dos onze aos dezessete anos, esteve geralmente em reformatórios. Sua especialidade era roubar carros, paquerar as garotas que saíam do colégio no fim da tarde, levá-las para as montanhas, transar com elas e voltar para dormir em alguma banheira disponível de um hotel da cidade. Seu pai, que fora um funileiro respeitado e trabalhador, tinha se transformado num viciado em vinho, o que é ainda pior do que um alcoólatra de uísque, e se limitava a viajar nos trens de carga, indo para o Texas durante o inverno e retornando a Denver no verão. Dean tinha irmãos pelo lado de sua mãe, já falecida — ela morreu quando ele era pequeno —, mas eles não gostavam dele. Seus únicos amigos eram os caras do bilhar. Dean, que possuía a energia vibrante de uma nova espécie de santo americano, e Carlo — junto com toda a turma do bilhar — eram os monstros do underground daquela temporada em Denver, e, bem de acordo com essa reputação, Carlo tinha um apartamento num subsolo da Grant Street, onde nós nos encontramos e varamos noites até o amanhecer — Carlo, Dean, eu, Tom Snark, Ed Dunkel e Roy Johnson. Mais tarde, novas informações a respeito desses outros.
Em minha primeira tarde em Denver, dormi no quarto de Chad King, enquanto sua mãe prosseguia com as tarefas domésticas lá embaixo e Chad trabalhava na biblioteca. Era uma tarde abafada nas High Plains, em julho. Eu não teria conseguido dormir, se não fosse por uma invenção do pai de Chad. Ele era um homem bondoso e gentil, já com seus setenta anos, velho e frágil, magro e enrugado, sempre contando histórias, com lenta e pausada satisfação; e boas histórias também, a respeito de sua infância nas planícies de Dakota do Norte, no século passado, quando montava pôneis em pêlo e perseguia coiotes com um porrete, por passatempo. Mais tarde, tornou-se professor nas escolas rurais do enclave de Qklahoma, e finalmente um homem de negócios com muitas propriedades em Denver. Possuía ainda seu velho escritório em cima de uma garagem qualquer, ali pela redondeza — a escrivaninha de tampo móvel ainda estava lá, junto com incontáveis papéis empoeirados, que registravam seu antigo entusiasmo e seu enriquecimento. Ele tinha inventado um tipo especial de ar-condicionado. Instalou um ventilador comum no batente de uma janela e, de alguma forma, fez correr água fria através de uma serpentina bem em frente às lâminas giratórias. O resultado era perfeito — numa área de um metro ao redor do ventilador —, a água se transformava em vapor naquele dia pachorrento, enquanto a parte térrea da casa continuava tão quente quanto sempre. Mas eu estava dormindo na cama de Chad, justamente embaixo do ventilador, com um grande busto de Goethe a observar-me, e caí no sono confortavelmente, para acordar apenas vinte minutos depois, morrendo de frio. Puxei um cobertor, e ainda assim senti frio. Fiquei tão gelado que não pude mais dormir, então desci. O velho perguntou-me se sua invenção funcionava. Respondi que funcionava até demais. Gostei do velho. Ele era carregado de recordações. — Certa vez, inventei um removedor de manchas que foi plagiado pelas grandes companhias do leste. Há alguns anos que tento reaver a patente. Se ao menos eu tivesse dinheiro para contratar um advogado decente... — Mas era tarde demais para contratar um advogado decente; e ele permanecia sentado com seu desalento. À noite, houve um jantar extraordinário: a mãe de Chad preparou carne de veado que o tio dele tinha caçado nas montanhas. Mas por onde andava Dean?
Jack Kerouac, in On the road – Pé na estrada

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