“Demora
tanto, de Natal a Natal”... — queixava-se uma velhinha, das
do Asilo, durante a festividade. Ainda pior, nesse prazo
entremeavam-se os meses do tempo-de-frio, que amedrontam, assim como
o vir de calores em excesso. Muitos dos recolhidos não podiam
esperar dezembro, partiam para além, davam a alma. Todos lá não
passavam de tênues sobreviventes, penduradinhos por um nada,
apagáveis a qualquer sopro. — “A Sra. então não podia fazer
por ano dois Natais?” — pois, queria aquela, conversadamente.
Tinha de perguntar, já já, agora, que senão logo lhe esquecesse
propor a ingente providência.
Simples
se repetia a festa, voto de caridade, para dar maior realce a Deus; e
uma demão de sonho. Aos resguardados hóspedes, reanimava com a
expectação, o Natal sendo o que tocava a junto tempo a todos, o
Natal era o que mais acontecia.
Tinham
galinha ao almoço, divertido e aumentado; lembrava-lhes comer carne
de porco, mas que fora em definitivo revogada, pois devido a que as
enfermarias se enchiam, enquanto diversos iam para a extrema-unção
e o enterro. Provavam sobremesas gostosas, abriam-se para eles
garrafas de refrescos. Alguns permaneciam meio encolhidos, no receio
de molharem as roupas. Ou calavam quantas habituais dores, nos
quadris e entrecostelas, nas pernas: quando alto respondiam, ásperos,
seria aproveitando correto modo de desabafo, substituição do gemer.
Vários se tapavam também de surdez, em vários graus.
Por
esses motivos, e mais os demais, adivinháveis, pronto-se agastavam,
contestando e implicando, não era próprio da idade fornecê-los de
simpatia humana, antes uma reima de desgosto essencial, em função
de acrimônia. Desconfiavam-se reciprocamente. Também ideado não
honrassem o fato da Natividade, culminador, aqui e, trans os séculos,
em longes país e tempo. Apenas abençoavam, como a um risonho
brinquedo, o Menino Jesus. Mesmo das antigas pessoas conhecidas e
amadas, por certo só lhes restassem, infusas na memória, as
silhuetas mais longas.
Mas
aguardavam as dádivas. Tudo então parecia invento.
Armava-se
no meio do salão-grande um estrado, onde ficava a Diretora, mais
outras pessoas de fora, mocinhas e moças que operavam a
distribuição; as que vinham lá com gentil benevolência e coração
de esquentar invernos. Nas cadeiras, por filas, os velhos e velhas
jubilados sentavam-se, em volta. Tão passados, alguns, que com
infinito cuidado tinham de ser colocados nos respectivos assentos.
Até
macróbios casais, pares para bodas de brilhantes. — “Minha
boa Irmã...” — um velhote pedia, mansamente irado —
“...mande minha mulher me dar atenção, ela está só
conversando com esse aí outro sujeito...” — e ainda proferia
que nem por muito parava caduco, e que era o marido dela, por ordem
de Deus. Mas sua velhota sorrindo justificou-se, não o desamparava,
apenas a cadeira é que ficara meio entortada para lá, ela não
podia dar jeito. A irmã corrigiu-lhe a posição, voltou-a mesmo um
pouco para o lado conjugal, a velhinha era anacrônica boneca, móvel
assim, obedientemente.
Era
decerto uma feita misturada assembleia, onde brancos e escuros, o de
dizível família e o rústico ou gentuço, o antes remediado e o que
pobrezinho sempre, da miséria cristã. Igualavam-se, porém, em
gelhas, cãs, murchidão, agruras, como se a velhice tivesse sua
própria descor, um odor, uma semelhança: sagradas as feições pela
fadiga e gasto, vida cumprida.
Enfim
palpitavam de insofrimento, querendo: as trêmulas mãos paralelas —
no apanhar seu regalo — cada um com esperançazinha de que
diferente e melhor que os outros, festejavam-se-lhes os olhos. Os
presentes de pequena valia, sabonetes, espelhos miúdos, qualquer
tutaméia ou til, embrulhados em lenços grandes, dos que são uso de
velhos, de que as velhinhas gostam.
— “O
meu, o meu?!” — indagava a já ceguinha nublada, do
lenço-grande que Papai Noel e o Menino Jesus lhe estavam dando. Seu
gosto era por um amarelo, com pintinhas vermelhas — atendia a que
recordações?
Exultando
outra: — “E é uma menina, meu Deus! é uma menininha loura,
que vem me entregar o mimo!...” — frequentava com fadas.
Soavam
antiquados risos, todos reenriquecidos, então, e assim, passeava-se
o adejo do Natal, entre bandeirinhas jucundas, idosas, em avenidas de
flinflas flores.
A
cerimônia terminada, se deu fé de uma coisa, sua notícia perpassou
pelas sutis vividas criaturas, algo a chamejar-lhes a atenção. Era
a respeito de uma, tão desditosinha anciã, que, pouco antes —
logo na santificada data de regozijos, naquela hora, esperada o ano
inteiro — não escolhera para grave adoecer.
Soube-se,
ela estava em sua cama, reperdida dos sentidos, extremamente só.
Talvez com apenas uns minutos creditados, podia retombar toda para o
lado de lá, a qualquer momento. Tinham deixado seu presente, seu
lenço, ali à beira, a ver se ela voltaria a si, nem que por
intervalo, para o ver, apalpar e apreciar.
Oh,
isso logo passava a fazer parte do Natal, isso era o que era preciso!
Aquela pousava como num berço, quietalma, era mesmo, estava pronta
para o milagre, um milagrinho, prodígios.
Alvoroçavam-se,
queriam ir todas e todos para lá, andando por si ou carregados, cá
fora se ajuntavam, cochichavam, comentavam, simulânimes, com tenaz
graça; se os deixassem entupiam o pequeno quarto. Se bem que sem
nenhum descuido se agarrassem com seus enrolados presentes, só por
ora se distraíam deles. Era um equilíbrio, se abriam ao que pintado
maior em todas as estampas, tlintassem sinos, noel, natal, o presépio
se alumiasse, tinidamente.
Sim
— que a velhinha, dormedormindo, fugazmente despertasse, o
necessário instante, lúcida entre duas mortes, isto é, que pudesse
receber seu regalo e dom, antes de continuar.
Guimarães
Rosa, in Ave, palavra
Nenhum comentário:
Postar um comentário