Lázaro
Vivo não teve rosto onde coubesse a surpresa. Rondou o burro e,
boquiaberto, espreitou a carga. Mwadia se antecipou:
— Zero
Madzero é que vai explicar.
O
pastor soltou o baú do lombo de Mbongolo e avançou quintal adentro,
antecipando-se às licenças. Lázaro e Mwadia seguiram-no. Madzero
foi directo ao assunto:
—
Trago-lhe esta caixa que desterrei lá
do chão da floresta.
O
burriqueiro sentou-se com solenidade e apoiou a arca sobre os
joelhos. Com infinito cuidado, foi abrindo a tampa da caixa como se
temesse que dali emergissem fantasmas. Quando desembrulhou a
papelada, alguns dos documentos se esfarelaram em poeira miúda. O
adivinhou reclamou:
— Não
quero esse pó nas minhas aragens! Essa terra daqui, só é boa para
cemitério.
Madzero
guardou os restantes papéis e voltou a tapá-los com a gaze de cera
que os protegia. O pastor relatou, então, as estranhas ocorrências
na floresta, junto ao rio Mussenguezi. O curandeiro escutou
petrificado. Mergulhou a cabeça entre as mãos e deixou-se ficar
assim como se o céu se tivesse tornado num peso vivo.
— Esses
ossos você não mexeu neles, pois não?
— Sou
quizumba para mexer em ossos já mortos?
— Você
sabe de quem são esses tais ossos?
— Como
posso saber?
— Nunca
ouviu falar do missionário Silveira?
Não.
Madzero era de uma pequena aldeia chamada Passagem, um emigrado de
outras lendas. Mas logo se apercebeu de que era assunto de peso.
— Esses
ossos são dele, desse padre português. Estão ali há mais de
quatrocentos anos...
—
Quatrocentos?, o pastor até
soltou uma gargalhada, tal era a perplexidade.
— Quem
guarda esses ossos são as aves de rapina.
O
adivinho espreitou o céu. Inspecionava se não seria perseguido
pelas voadoras guardiãs. Suspirou e prosseguiu, em tom contido, como
se receasse ser escutado:
— Essa
estátua, essa caixa, esses papéis, tudo isso era pertença desse
Silveira. Me entende agora, Madzero? Tudo isso é muito quente...
— Não
diga isso, Ba Lázaro, o que eu me assusto.
— Mas,
por outro lado, tudo isto agora faz sentido...
— Tudo
o quê?
— Você
sonhou que tinha as mãos em fogo, não foi?
—
Sonhei, não. Senti mesmo.
— Foi
por ter mexido em coisas que ninguém pode tocar.
— Mas
esse falecido, acrescentou o pastor em tom de desculpa, também
não o enterraram muito fundo...
O
curandeiro surpreendeu-se com o despropósito do comentário de Zero.
O tom seco punha cobro à conversa:
— Não
há fundura para os mortos. Neste mundo todo, só há um cemitério,
disse, apontando o próprio peito.
Depois,
Lázaro Vivo levantou-se, espreitou a caixa e pegou nos manuscritos
como se lidasse com coisa putrefacta. Foi manipulando os papéis mais
olhando entre eles que para eles. O burriqueiro estranhou tão
dedicada atenção.
—
Lázaro, me diga, com a sinceridade: o
compadre sabe ler?
O
adivinho respondeu que tinha os seus modos de ler. Foi a uma tina de
água e nela lançou um dos manuscritos. Ficou olhando as letras se
diluírem, primeiro apenas esbatidas, depois engolidas pelo papel já
sem forma.
— É
sempre assim: nunca vi uma palavra que soubesse nadar.
—
Desculpe, compadre, mas está-me a
destruir os papéis...
— É
só este. Eu leio na água, meu filho...
Inclinado
sobre a tina, Madzero seguia atento o evoluir de pequenas manchas que
se soltavam como nuvens coloridas. O burriqueiro, contudo, tinha
chegado aos limites: de um salto, arrancou os papéis das mãos do
adivinho. Depois, com despacho, voltou a meter os documentos no baú.
— Eu
vou, Lázaro. Prefiro ir.
— Não
vai sem eu lhe dizer uma coisa. Está a escutar bem?
— Como
posso escutar se ainda não falou?
— É
que ele não morreu de doença.
— Ele,
quem?
— Esse
missionário. Esse homem foi morto.
O
adivinho ponderou palavra a palavra antes de prosseguir. O assunto
tinha gravidade para que pensasse depressa e falasse devagar. Pessoa
morre, bicho é morto. A criatura humana quando é morta fica na
condição dos demais bichos. O seu espírito é um ngozi, parente
das almas dos animais. Distante do pensamento de Lázaro Vivo, o
burriqueiro insistia em se retirar:
— Não
quero nem saber. Morto ou falecido, isso aconteceu antes de eu chegar
a estas bandas. Ninguém me pode acusar...
— Não
é nada disso, meu irmão. Você sabe o que eu quero dizer...
— Não
sei se quero saber.
— A
alma desse homem é maior que a vida dele. Está a perceber? Não,
ele não está a perceber ...
O
curandeiro olhou o rosto do burriqueiro como se descobrisse a
natureza e o vazio. De pronto, passou a dirigir-se a Mwadia Malunga,
a voz alterada como não convinha a um homem de tanto aviso:
— Esse
falecido vai andar por aí, cheirando as nossas vidas como um
cachorro esfaimado.
Um
silêncio pesou e a noite ganhou viscosidade. A voz de Lázaro voltou
à serenidade quando ele vaticinou:
— Esse
ngozi veio buscar vingança...
E
o adivinho prosseguiu: pior que estar morto é estar morto-e-ferido.
É que um morto-e-ferido continua nos incomodando, requerendo os
nossos contínuos cuidados. É um sangrar sem ferida, uma dor sem
carne, um cheiro putrefacto sem cadáver.
— Não
sente o cheiro, comadre Mwadia?
Mia
Couto, in O
outro pé da sereia
Nenhum comentário:
Postar um comentário