quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Não há fundura para os mortos

Lázaro Vivo não teve rosto onde coubesse a surpresa. Rondou o burro e, boquiaberto, espreitou a carga. Mwadia se antecipou:
Zero Madzero é que vai explicar.
O pastor soltou o baú do lombo de Mbongolo e avançou quintal adentro, antecipando-se às licenças. Lázaro e Mwadia seguiram-no. Madzero foi directo ao assunto:
Trago-lhe esta caixa que desterrei lá do chão da floresta.
O burriqueiro sentou-se com solenidade e apoiou a arca sobre os joelhos. Com infinito cuidado, foi abrindo a tampa da caixa como se temesse que dali emergissem fantasmas. Quando desembrulhou a papelada, alguns dos documentos se esfarelaram em poeira miúda. O adivinhou reclamou:
Não quero esse pó nas minhas aragens! Essa terra daqui, só é boa para cemitério.
Madzero guardou os restantes papéis e voltou a tapá-los com a gaze de cera que os protegia. O pastor relatou, então, as estranhas ocorrências na floresta, junto ao rio Mussenguezi. O curandeiro escutou petrificado. Mergulhou a cabeça entre as mãos e deixou-se ficar assim como se o céu se tivesse tornado num peso vivo.
Esses ossos você não mexeu neles, pois não?
Sou quizumba para mexer em ossos já mortos?
Você sabe de quem são esses tais ossos?
Como posso saber?
Nunca ouviu falar do missionário Silveira?
Não. Madzero era de uma pequena aldeia chamada Passagem, um emigrado de outras lendas. Mas logo se apercebeu de que era assunto de peso.
Esses ossos são dele, desse padre português. Estão ali há mais de quatrocentos anos...
Quatrocentos?, o pastor até soltou uma gargalhada, tal era a perplexidade.
Quem guarda esses ossos são as aves de rapina.
O adivinho espreitou o céu. Inspecionava se não seria perseguido pelas voadoras guardiãs. Suspirou e prosseguiu, em tom contido, como se receasse ser escutado:
Essa estátua, essa caixa, esses papéis, tudo isso era pertença desse Silveira. Me entende agora, Madzero? Tudo isso é muito quente...
Não diga isso, Ba Lázaro, o que eu me assusto.
Mas, por outro lado, tudo isto agora faz sentido...
Tudo o quê?
Você sonhou que tinha as mãos em fogo, não foi?
Sonhei, não. Senti mesmo.
Foi por ter mexido em coisas que ninguém pode tocar.
Mas esse falecido, acrescentou o pastor em tom de desculpa, também não o enterraram muito fundo...
O curandeiro surpreendeu-se com o despropósito do comentário de Zero. O tom seco punha cobro à conversa:
Não há fundura para os mortos. Neste mundo todo, só há um cemitério, disse, apontando o próprio peito.
Depois, Lázaro Vivo levantou-se, espreitou a caixa e pegou nos manuscritos como se lidasse com coisa putrefacta. Foi manipulando os papéis mais olhando entre eles que para eles. O burriqueiro estranhou tão dedicada atenção.
Lázaro, me diga, com a sinceridade: o compadre sabe ler?
O adivinho respondeu que tinha os seus modos de ler. Foi a uma tina de água e nela lançou um dos manuscritos. Ficou olhando as letras se diluírem, primeiro apenas esbatidas, depois engolidas pelo papel já sem forma.
É sempre assim: nunca vi uma palavra que soubesse nadar.
Desculpe, compadre, mas está-me a destruir os papéis...
É só este. Eu leio na água, meu filho...
Inclinado sobre a tina, Madzero seguia atento o evoluir de pequenas manchas que se soltavam como nuvens coloridas. O burriqueiro, contudo, tinha chegado aos limites: de um salto, arrancou os papéis das mãos do adivinho. Depois, com despacho, voltou a meter os documentos no baú.
Eu vou, Lázaro. Prefiro ir.
Não vai sem eu lhe dizer uma coisa. Está a escutar bem?
Como posso escutar se ainda não falou?
É que ele não morreu de doença.
Ele, quem?
Esse missionário. Esse homem foi morto.
O adivinho ponderou palavra a palavra antes de prosseguir. O assunto tinha gravidade para que pensasse depressa e falasse devagar. Pessoa morre, bicho é morto. A criatura humana quando é morta fica na condição dos demais bichos. O seu espírito é um ngozi, parente das almas dos animais. Distante do pensamento de Lázaro Vivo, o burriqueiro insistia em se retirar:
Não quero nem saber. Morto ou falecido, isso aconteceu antes de eu chegar a estas bandas. Ninguém me pode acusar...
Não é nada disso, meu irmão. Você sabe o que eu quero dizer...
Não sei se quero saber.
A alma desse homem é maior que a vida dele. Está a perceber? Não, ele não está a perceber ...
O curandeiro olhou o rosto do burriqueiro como se descobrisse a natureza e o vazio. De pronto, passou a dirigir-se a Mwadia Malunga, a voz alterada como não convinha a um homem de tanto aviso:
Esse falecido vai andar por aí, cheirando as nossas vidas como um cachorro esfaimado.
Um silêncio pesou e a noite ganhou viscosidade. A voz de Lázaro voltou à serenidade quando ele vaticinou:
Esse ngozi veio buscar vingança...
E o adivinho prosseguiu: pior que estar morto é estar morto-e-ferido. É que um morto-e-ferido continua nos incomodando, requerendo os nossos contínuos cuidados. É um sangrar sem ferida, uma dor sem carne, um cheiro putrefacto sem cadáver.
Não sente o cheiro, comadre Mwadia?
Mia Couto, in O outro pé da sereia

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