quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Exilados

Sidney Bechet 

Há uma estátua de Sidney Bechet em algum lugar de Paris. Ele e Josephine Baker, em épocas diferentes — Josephine foi antes — foram os dois maiores exemplos de artistas negros americanos adotados por Paris. Onde, além de um refúgio do racismo, encontraram fama e favores como não tinham em casa. Até hoje Bechet tem mais reputação na França do que nos Estados Unidos. Era um tipo curioso, que cultivava com cuidado a própria singularidade. Para começar, tocava saxofone soprano, um instrumento raro no jazz ainda hoje. (Por favor, se você lembrou do Kenny G, pare de ler imediatamente.) Até John Coltrane começar a usá-lo com regularidade, só Bechet, Eric Dolphy e outros poucos jazzistas tocavam o sax soprano. Bechet era um mestre. Conhecido pela sua vaidade, tanto quanto pelo temperamento explosivo e a excentricidade, Bechet nunca discordou dos franceses que o idolatravam. Sua interpretação mais famosa é da sua própria composição Petite fleur.
Bechet é um bom exemplo do outro lado da relação de Paris com os seus expatriados. Para alguns o exílio em Paris foi uma liberação e uma educação, para outros Paris acabou sendo um retiro quase provinciano, e um atraso. É enorme a lista das vanguardas que floresceram na cidade, embora seja relativamente pequeno o número das que nasceram lá, mas muitos — principalmente os americanos — só aproveitaram de Paris o pitoresco e o aluguel baixo. Com a possível exceção de Gertrude Stein, cuja sensibilidade já era meio europeia, todos os outros brancos (Hemingway, Fitzgerald, Miller, etc.) provavelmente fariam o que fizeram com ou sem o seu rito de passagem por Paris. E se para estes Paris foi só paisagem, para artistas tipo Bechet, mimado além da conta por razões que não tinham a ver com a música, Paris foi um mundo protegido, diminuído e finalmente diminuidor.
Para os seus contemporâneos no jazz, Bechet morreu como uma curiosidade, mais uma mania francesa do que um grande músico. O pianista Bud Powell, supostamente o modelo para o personagem do filme Round about Midnight, teria tido o mesmo destino de Bechet se não preferisse voltar para Nova York, a sujeira, as drogas, o ódio racial e a realidade. Morreu moço e louco, mas com a reputação de gênio. Para Bechet o exílio foi uma espécie de abstenção. E ele foi um precursor da estranheza americana com o gosto francês em americanos que culminou com as exegeses críticas da obra de Jerry Lewis. Em Paris, Bechet estava longe da zona de combate, onde a sensibilidade jazzística brigava com o crasso comercialismo, a incompreensão, a discriminação e o embrutecimento, mas onde as reputações que contavam eram feitas.
Muitos exilados em Paris eram isso, combatentes longe da ação. Viviam no centro do mundo com a sensação de que sua vida devia estar acontecendo em outro lugar. O próprio Bechet se livrou da síndrome porque era tão vaidoso, dizem, que achava que era, pessoalmente, o centro do mundo.
Em Paris há uma academia de música russa cujo refeitório é aberto ao público. Comida previsível — o estrogonofe, fica-se sabendo, não foi uma invenção de anfitriãs brasileiras nos anos cinquenta, é russo mesmo —, mas boa e barata. Come-se no porão da academia em meio a retratos de compositores russos e uma decoração pobre mas evocativa. Bonecas e balalaicas e um velho rádio de madeira no qual jamais se ouvirá que o tzar voltou. Há algo de melancólico nestes enclaves de nostalgia para refugiados de outros tempos, embora ninguém à nossa volta parecesse muito russo ou ressentido. Justamente por ser a cidade mais cosmopolita do mundo, Paris acabou sendo uma confederação de deslocados, de pequenas comunidades desterradas, cada uma com suas saudades e suas queixas em mau francês.
Todas as diásporas do século dos refugiados se cruzaram em Paris. Pode-se mesmo fazer uma recapitulação deste século cruel através das lembranças de terras abandonadas grudadas nas suas paredes. Russos corridos da sua terra pela História, portugueses corridos da sua terra pela miséria, brasileiros exilados amaldiçoando o frio e o feijão-branco e sonhando em voltar para retomar suas vidas consequentes, ou pelo menos se atualizar com a gíria. A vida de verdade acontecendo longe de todos eles. A vida cosmopolita sendo, como para Sidney Bechet, um sinônimo de irrelevância.
Na saída da academia russa dá-se com a Torre Eiffel do outro lado do rio. A torre foi inaugurada no começo do século dos refugiados. O exílio foi o fato intelectual do século XX e provocou ou inspirou os artistas que não diminuiu.
Mas ô século desgraçado.
Luís Fernando Veríssimo, in Diálogos impossíveis

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