Por
favor, o senhor não me leve a mal, sei que suas intenções são as
melhores, mas acontece que sou mineiro, preso muito às coisas de
antigamente, quero que elas sobrevivam, fazem parte do meu corpo, e
esse é o caso do carro de bois, sobre o que já escrevi várias
coisas; menino, era uma felicidade ver o carro de bois chegando, a
gente corria atrás e se aboletava, na frente o carreiro conduzindo
os bois com o seu ferrão, atrás os bois caminhando
pachorrentamente, humilhados de cabeça baixa, conformados com o seu
triste destino, e o eixo gemendo música dolorida... Eu disse “o”
eixo, no singular, porque carro de boi, por razões da geometria e da
física, só pode ter um eixo com duas rodas. Carro de boi com dois
eixos e quatro rodas quebra. Por que é assim? Eu lhe pergunto: para
garantir que todos os pés de um tamborete estejam assentados no
chão, quantos pés ele deve ter? A resposta é fácil: três.
Geometria: três pontos definem um plano. Tamborete de três pés
está sempre assentado. Tamborete de quatro pés pode ficar manco.
Basta um desnível no chão... Veículo de quatro rodas precisa de
estrada boa, plana. Acontece que carro de boi foi feito para caminhos
que nem são estradas, esburacados. Por isso, para não mancar, só
têm três pontos de apoio: as duas rodas e os bois. Os artesãos de
antigamente não eram bobos... Sabiam ciência e geometria. Mas o
senhor, com a melhor das intenções, para ilustrar seu restaurante
de nome tão bonito, “Carro de boi”, pediu que um artista fizesse
um desenho... Mas ele era um homem de cidade... Nunca viu um carro de
bois e, pior, não se deu ao trabalho de procurar uma fotografia. E
ele desenhou um carro de bois de quatro rodas. Não existe. Não me
leve a mal. Eu só quis ajudar. É que amo os carros de bois porque
eles fazem parte da minha alma. Olhando para um carro de bois de
quatro rodas, eu começo a mancar…
Rubem
Alves, In Do universo à jabuticaba
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