sábado, 25 de novembro de 2017

Adeus aos corações que aguentaram o tranco

Com a nova ortografia da Língua Portuguesa, dei um triste adeus aos tremas e a algumas palavras que levavam acento. Vou sentir falta da velha ortografia, uma falta nada nostálgica, mas visual.
O voo, sem o circunflexo, parece que ficou mais raso e pesado; lembra o voo de um inhambu, essa ave grande e pesada e desajeitada que, para sair do chão, bate asas com estardalhaço, como se fosse uma bandeira ao vento.
E o que dizer da nova “idéia”? Sem o acento agudo, tornou-se grave, fechada e sugere uma pronúncia mais lusitana. Lamento a nudez de ideia, como lamento também a nudez da palavra jiboia, que perdeu o acento espetado no centro do corpo.
E os tremas, esses dois pontinhos suspensos, olhinhos fixos que davam tanta graça e elegância à letra u?
Tantos corações que “agüentaram” o tranco por toda uma vida agora vão ter que suportar emoções, dissabores e adversidades sem o trema. Eu gostava desses pontinhos gêmeos que davam um encanto visual à palavra “tranqüilo”. Gostava também das mãos de minha avó, mãos que passavam unguento nas costas dos netos durante as noites úmidas de Manaus. Com ou sem trema, o unguento ainda existe, mas as mãos da avó sumiram e apenas emitem sinais na minha memória. Espero que aquelas noites não sejam molhadas de tanta humidade , tomara que as noites e os dias em tempo chuvoso permaneçam úmidos, livres de um h intruso, desnecessário.
Sempre antipatizei com o hífen, esse traço minúsculo que separa duas palavras. Nem todos os hífens foram suprimidos, e a nova regra para o seu uso ainda é nebulosa, como afirmou Evanildo Bechara, um dos nossos lexicógrafos mais doutos. Sei que “segundo-tenente” leva hífen, mas como nomear a condição degradante em que vivem milhões de brasileiros: sub-humana ou subhumana?
Sei também que “ultra-rápido” será grafado “ultrarrápido”. Essa duplicação do r ameaça a prevalência das vogais e lembra uma afirmação de Balzac sobre a língua polonesa: as consoantes odeiam as vogais.

Machado de Assis já não escrevia como Eça de Queirós; aliás, já nem escrevia como os seus contemporâneos do Brasil. O texto do escritor argentino Roberto Arlt não é o castelhano de seus contemporâneos espanhóis. O ritmo, a sonoridade e a sintaxe da prosa de Arlt são outros. E já nem falo do vocabulário do subúrbio de Buenos Aires. Não será necessário mencionar Guimarães Rosa, que inventou uma linguagem quase intraduzível para o mundo.
Para desespero dos editores e revisores, daqui a dez ou quinze anos haverá uma nova reforma ortográfica. Tomara que não padronizem a língua portuguesa, pois a uniformidade seria o fim da picada. O que enriquece nossa língua é justamente o conjunto de diferenças fonéticas e sintáticas da língua portuguesa falada e escrita em vários continentes. A riqueza de uma língua herdada pelos colonizadores reside também na sua inovação e maleabilidade.
As línguas portuguesa e espanhola desta América são línguas transplantadas. Nasceram da mesma semente, mas cresceram como arbustos de outro clima e em situações históricas específicas; de algum modo, esses arbustos são estranhos às sementes de origem.
A jurisprudência e a burocracia podem usar uma ortografia padronizada, mas não os escritores, que são parentes próximos de Caliban, embora devam muito a Próspero. O narrador-onça do relato “Meu tio o Iauaretê” que o diga. Nesse conto de Guimarães Rosa, a prosódia, a sintaxe e o léxico não obedecem a convenções ou normas rígidas. Rosa parece dizer que somos volúveis e inventivos na fala e na escrita.
A reforma ortográfica de 2020 ou 2022 pode suprimir todos os acentos, todos os hífens, pode excluir até o ç, com prejuízo gritante à palavra “caça”. Mas deixem, por favor, o nosso gerúndio. Não estou a pedir muito, pá. Estou pedindo apenas isso: nosso pendor ao movimento e à ação, que nem sempre seguem para a frente. Mas esta não é uma crônica sobre caranguejos.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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