O
trabalho dos insensatos afligirá aqueles que não sabem ir à
cidade. (Eclesiastes, X, 15)
Destinava-se
a uma cidade maior, mas o trem permaneceu indefinidamente na
antepenúltima estação.
Cariba
acreditou que a demora poderia ser atribuída a algum comboio de
carga descarrilado na linha, acidente comum naquele trecho da
ferrovia. Como se fizesse excessivo o atraso e ninguém o procurasse
para lhe explicar o que estava ocorrendo, pensou numa provável
desconsideração à sua pessoa, em virtude de ser o único
passageiro do trem.
Chamou
o funcionário que examinara as passagens e quis saber se constituía
motivo para tanta negligência o fato de ir vazia a composição.
Não
recebeu uma resposta direta do empregado da estrada, que se limitou a
apontar o morro, onde se dispunham, sem simetria, dezenas de casinhas
brancas.
— Belas
mulheres? — indagou o viajante.
— Casas
vazias.
Percebeu
logo que tinha pela frente um cretino. Apanhou as malas e se dispôs
a subir as íngremes ladeiras que o conduziriam ao povoado.
A
escalada foi lenta e cansativa. O suor escorria pela sua testa,
enquanto seus olhos se sentiam cada vez mais atraídos pela leveza
das pequeninas edificações.
Uma
vaga tristeza rodeava o lugarejo. As janelas e portas das casas
estavam fechadas, mas os jardins pareciam ter sido regados na
véspera. Experimentou bater em alguns dos chalés e não o
atenderam. Caminhou um pouco mais e, do topo da montanha, avistou a
cidade, tão grande quanto a que buscava. Vinte mil habitantes, soube
depois.
Desceu
vagarosamente. Os homens (e por que não as belas mulheres?) deveriam
encontrar-se lá embaixo.
Várias
vezes voltou a cabeça, procurando fixar bem a paisagem que deixava
para trás. Tinha o pressentimento de que não regressaria por aquele
caminho.
Durante
todo o percurso, desde as vias secundárias à avenida principal, os
moradores do lugar observaram Cariba com desconfiança. Talvez
estranhassem as valises de couro de camelo que carregava ou o seu
paletó xadrez, as calças de veludo azul. Mesmo sendo o seu traje
usual nas constantes viagens que fazia, achou prudente desfazer
qualquer mal-entendido provocado pela sua presença entre eles:
— Que
cidade é esta? — perguntou, esforçando-se para dar às palavras o
máximo de cordialidade.
Nem
chegou a indagar pelas mulheres, conforme pretendia. Pegaram-no com
violência pelos braços e o foram levando, aos trancos, para a
delegacia de polícia:
— É
o homem procurado — disseram ao delegado, um sargento espadaúdo e
rude.
— Já
temos vadios de sobra nesta localidade. O que veio fazer aqui? —
perguntou o policial.
— Nada.
— Então
é você mesmo. Como é possível uma pessoa ir a uma cidade
desconhecida sem nenhum objetivo? A menos que seja um turista.
— Não
sou turista e quero saber onde estou.
— Isso
não lhe podemos revelar agora. Poderia prejudicar as investigações.
— E
por que as casas do morro estavam fechadas? — atalhou o
desconhecido, agastado com a falta de polidez com que o tratavam.
— Se
não tomássemos essa precaução você não desceria.
Cariba
compreendeu tardiamente que a sedução das casinhas brancas fora um
ardil para atraí-lo ao vale.
*
* *
— As
testemunhas! — gritou o delegado.
Introduziram
na sala um homem de rosto chupado, os cabelos grisalhos. Fez uma
reverência diante da autoridade e encarou o preso com visível
repugnância:
— Não
tenho medo de sua cara.
— A
sua coragem pouco nos importa — aparteou, áspero, o sargento. —
Cinja-se ao que for interrogado e responda logo se conhece este
sujeito.
— Não.
Nunca o vi antes, mas tenho a impressão de que foi ele quem me
abordou na rua. Pediu-me informações sobre os nossos costumes e
desapareceu.
O
militar se impacientou:
—
Venham os outros idiotas!
Um
de cada vez, vários homens depuseram e não esclareceram muita
coisa. A uns, o estranho fizera indagações de pouca importância:
“Esta cidade é nova ou velha?” — a outros, dirigira perguntas
inconvenientes: “Quem são os donos do município?”.
Muitos
viram-no de perto, sem que o suspeito lhes dissesse sequer uma
palavra. Só num ponto estavam de acordo, tanto os que lhe ouviram a
voz ou lhe divisaram apenas o semblante: não sabiam descrever seu
aspecto físico, se era alto ou baixo, qual a sua cor e em que língua
lhes falara.
Já
saíra a última testemunha, quando o delegado, exultante, deu um
murro na mesa:
—
Tragam a Viegas, ela sabe!
Duas
horas se passaram até que chegasse a mulher. Entrou desembaraçada,
os lábios ligeiramente pintados, as sobrancelhas pinçadas e um
sorriso que deixou Cariba enamorado.
Rendido
ao encanto da prostituta que, por seu lado, trazia os olhos fixos nos
dele, o forasteiro não ouvia o que ela falava. Aos poucos,
reencontrou-se com a realidade e começou a prestar atenção ao
depoimento:
— Quis
fugir, porém ele me agarrou pelos pulsos e perguntou: “Como vai
seu pai? Ainda mora com as tias velhas?”. — Não obtendo
resposta, indagou pelos meus filhos. O senhor bem sabe que sou
solteira e papai, quando morreu, morava sozinho. Por isso, antes que
terminasse de falar, já suspeitava dele e me apressei em libertar-me
dos seus braços. Não consegui. Segurou-me com mais força e,
obrigando-me a encostar o ouvido nos seus lábios, dizia: “É
preciso conspirar”. — Na expectativa de convencê-lo a ir embora,
mostrei-lhe o perigo a que se expunha enfrentando uma polícia tão
rigorosa quanto a nossa. Sem demonstrar temor, respondeu-me: “Não
é necessária a polícia”.
Cariba
sentiu uma grande inveja de quem abraçara a mulher. Que corpo tivera
nas mãos!
O
policial, porém, não se contentou com o que ouvira:
— E
reconhece este homem como sendo o que a abraçou na rua?
— Não
me lembro do seu rosto, mas um e outro são a mesma pessoa.
O
delegado ficou satisfeito. Virou-se para o indiciado e lhe afirmou
que, mesmo tendo elementos para ultimar o inquérito, ouviria
novamente as testemunhas na sua presença, o que de fato fez com a
habitual grosseria:
— Então
vocês viram o cara e não sabem descrevê-lo, seus idiotas!
À
exceção da Viegas, permaneceram todos em silêncio. Ela, fixando os
olhos maliciosos no desconhecido, confirmou:
— Sim,
é ele.
Animados,
os outros também falaram, repetindo o que disseram antes: não
reconheciam o prisioneiro, mas deveria ser o mesmo indivíduo que
lhes perguntara coisas tão estranhas.
O
sargento chegara a uma conclusão, entretanto divagava:
— O
telegrama da Chefia de Polícia não esclarece nada sobre a
nacionalidade do delinquente, sua aparência, idade e quais os crimes
que cometeu. Diz tratar-se de elemento altamente perigoso,
identificável pelo mau hábito de fazer perguntas e que estaria hoje
neste lugar.
Cariba,
já incomodado com a perspectiva de ficar detido até que se
desfizesse o equívoco, ponderou:
— Nada
disso faz sentido. Não podem me prender com base no que acabo de
ouvir. Cheguei aqui há poucas horas e as testemunhas afirmam que me
viram, pela primeira vez, na semana passada!
O
delegado impediu que prosseguisse:
— O
comunicado do setor de segurança é claro e diz textualmente: “O
homem chegará dia 15, isto é, hoje, e pode ser reconhecido pela sua
exagerada curiosidade”.
O
policial encerrou os interrogatórios, declarando que os depoimentos
ali prestados eram suficientes para incriminar o acusado, porém, não
desejava precipitar-se. Aguardaria o aparecimento de alguém que
reunisse contra si indícios de maior culpabilidade e eximisse Cariba
das acusações que lhe pesavam.
— Quer
dizer que permanecerei preso esse tempo todo?
A
resposta do delegado desanimou-o: ficaria encarcerado até a captura
do verdadeiro criminoso.
E
se o culpado não existisse?
Cinco
meses após a sua detenção, ele não mais espera sair da cadeia.
Das suas grades, observa os homens que passam na rua. Mal o encaram,
amedrontados, apressam o passo.
Pressente,
às vezes, que irão perguntar qualquer coisa aos companheiros e fica
à espreita, ansioso que isso aconteça. Logo se desengana. Abrem a
boca, arrependem-se, e se afastam rapidamente.
As
mulheres, alheias ao medo, costumam ir à Delegacia para levar-lhe
cigarros. São as mais belas, exatamente as que esperava encontrar no
distante povoado. Meigas e silenciosas, notam nos olhos dele o
desespero por não poder abraçá-las, sentir-lhes o hálito quente.
Só
resta esperar pela Viegas, que, sensual e perfumada, vem vê-lo ao
fim da tarde. Sorri, e diz com uma invariabilidade que o enternece:
— É
você.
Quando
ela se despede — o corpo tenso, o suor porejando na testa —
Cariba sente o imenso poder daquela prisão.
Caminha,
dentro da noite, de um lado para outro. E, ao avistar o guarda,
cumprindo sua ronda noturna, a examinar se as celas estão em ordem,
corre para as grades internas, impelido por uma débil esperança:
—
Alguém fez hoje alguma pergunta?
— Não.
Ainda é você a única pessoa que faz perguntas nesta cidade.
Murilo
Rubião, in Obra completa
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