Tenho um vizinho
que se diz filósofo. Semana passada, em uma reunião de condomínio,
como discordássemos em torno de uma questão hidráulica e sabendo
de minha paixão pela literatura, ele me desafiou: “Kant dizia que
a leitura de romances corrói o pensamento e aniquila a memória”.
E, fechando a cara, prosseguiu: “Tome cuidado, porque a literatura
pode provocar um grande mal”. Mal sabe meu vizinho que, naquela
tarde, eu lia, com grande interesse, Monte Verità, o mais
recente livro de Gustavo Bernardo (Rocco, Coleção Jovens Leitores).
Um romance filosófico que – mesmo retido na etiqueta comercial da
“literatura para jovens” – trabalha justamente com algumas
ideias de Imannuel Kant. Em particular, com as que compõem sua
ética.
Antes de modificar
o mundo, devemos modificar a nós mesmos, Kant sugeria. E nos dava
outra sugestão ainda mais decepcionante: o importante não é
procurar a felicidade, mas merecê-la. Não é agradável o conselho
de que desistamos de consertar o mundo; mais dolorosa ainda é a
proposta de que abdiquemos da felicidade. Contudo, só depois de
abandonar a ilusão podemos, enfim, viver. E até melhorar um pouco o
mundo e diminuir a infelicidade.
É o que faz o
moçambicano Manuel, protagonista de Monte Verità. Depois de
ter a mulher assassinada pela repressão política, só lhe resta
fugir de Maputo. Não tem tempo, sequer, de apanhar a filha pequena
que o espera na escola. Pouco antes, quando se deparou com a mãe
morta, a menina lhe ofereceu um insight metafísico. Olhou o corpo
vazio e disse: “Papai, Deus chegou atrasado”. Aceitando as
brutais limitações impostas pela ausência divina, Manuel se
refugia na Suíça italiana, onde se emprega como garçom no hotel
Monte Verità. Nos intervalos do trabalho, escreve o livro que
estamos a ler.
O livro de Manuel
conta a história de misteriosas “intervenções” impostas ao
planeta Terra, atos pragmáticos e “sem autor” que, no entanto,
modificam nossa existência. Quem as propaga? Algum poder secreto?
Seres de outro planeta? O próprio Deus? A primeira delas bane todas
as armas. Nas intervenções seguintes, combate-se a explosão
demográfica, a poluição, a violência contra os animais e os
crimes hediondos. Atos que, no entanto, não pretendem dar lições
de vida ou “educar”. O objetivo não é salvar ou amadurecer,
mas, sim, levar o homem a abandonar a onipotência, para que suporte
se ver como o ente vulnerável que é. O homem deve desistir da
felicidade e da perfeição para, contando apenas consigo mesmo,
merecer enfim esse nome.
Olhei para meu
vizinho e pensei no modo altivo com que ele manipula as ideias, como
se elas existissem apenas para lhe servir. Ocorreu-me, então, que a
filosofia é, muitas vezes, uma forma mais obsessiva de literatura.
Acontece que, enquanto os filósofos se agarram precariamente a seus
sistemas e conceitos, os escritores – que não têm onde se amparar
– agarram-se ao que lhes falta. Todo escritor parte, sempre, de uma
ausência. Um grande vazio brilha na primeira página em branco.
Pensava nisso
quando o porteiro me entregou um postal expedido por uma amiga que
vive em Paris. Uma bela fotografia do escritor francês
Louis-Ferdinand Céline, tomada seis anos antes de sua morte.
Sexagenário, Céline – um escritor fabuloso sempre odiado por
culpa de suas ideias fascistas, que são de fato hediondas –
aparece em um jardim, vestindo roupas amarfanhadas, desolado e
cabisbaixo, a observar seu gato. Ereto e solene, ao contrário, o
animal ostenta o olhar altivo dos “homens que sabem pensar”;
enquanto Céline, àquela altura entregue ao ostracismo e à derrota,
é só um homem que luta para suportar a dor.
Duro e
intransigente na vida, Céline fez da literatura, ao contrário, um
lugar de liberdade. Não conseguiu livrar-se, porém, da leitura
dogmática a que seus grandes romances, até hoje, estão condenados.
A que torrente de olhares os escritores estão expostos! Há poucos
dias, uma vaga absurda de incompreensão levou Aventuras
provisórias, o romance de Cristovão Tezza, a ser recolhido
depois de adotado pelas escolas de Santa Catarina. Aos olhos obtusos
das autoridades locais, duas ou três cenas amorosas tornariam o
livro ofensivo aos adolescentes.
É desse mesmo
mundo duro e cego, em que romances são vistos como venenos, que
trata Monte Verità. Ele é também o objeto de Aventuras
provisórias, a história de uma traição que termina em um
crime. A ética, para o escritor, porém, não está na submissão a
princípios ou a dogmas. O escritor só tem uma ética: não pode
trair a si mesmo, sob pena de se tornar, apenas, um escrivão. E é
nessa condição inegociável que a potência da literatura se
garante.
Em nosso tolo mundo
do eu, os escritores se transformaram em celebridades. Escritores
deveriam repetir, hoje, a frase de Manuel, o protagonista de Gustavo
Bernardo: “Eu não sou nenhum tipo de deus. Eu não sou sequer
nenhum tipo de eu”. Universo vazio, no qual as coisas só existem
em potência, a literatura produz narrativas tão distintas quanto
Aventuras provisórias e Monte Verità; agrega – sem que
isso signifique conflito, mas, ao contrário, riqueza – autores tão
distantes quanto Cristovão Tezza e Gustavo Bernardo. É por isso que
a literatura se torna ameaçadora: porque não exclui nada nem
ninguém. Porque encara, sem medo, a precariedade do homem.
Julio Cortázar
dizia, por isso mesmo, que só a literatura é capaz de desferir no
mundo uma verdadeira “bofetada metafísica”. Não para fazer
proselitismo ou pregação; tampouco para buscar seguidores ou
produzir crentes. Ao contrário, a literatura só produz descrentes;
sujeitos que, cientes da fragilidade do mundo, fazem da fraqueza a
sua grandeza. Tal disponibilidade para o quase-nada rege, também, os
verdadeiros filósofos. É dela, ainda, que o moçambicano Manuel se
vale para continuar a viver. Conhecido por seu ceticismo, o filósofo
escocês David Hume, um antecessor de Kant, afirmava que a filosofia
é um saber vacilante, no qual “praticamente nada se pode dizer”.
É também com esse “praticamente nada” que os escritores
escrevem.
José Castello,
in Sábados inquietos
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