quarta-feira, 15 de novembro de 2017

A árvore do tamarindo

Quem voa depois da morte?
É a folha da árvore.
Dito de Tizangara

Não resisti. Regressei à minha velha casa, e ali, sob a sombra do tamarindo, me deixei afogar em lembranças. Olhei a imensa copa e pensei: nunca fomos donos do tamarindo. Era o inverso, a árvore é que tinha a casa. Se estendia, soberana, pelo pátio, levantando o chão de cimento. Eu olhava aquele pavimento, assim enrugado pelas raízes, se erguendo em placas, e me parecia um réptil mudando de pele.
O tamarindo mais sua sombra: aquilo era feito para abraçar saudades. Minha infância fazia ninho nessa árvore. Em minhas tardes de menino, eu subia ao último ramo como se em ombro de gigante e ficava cego para assuntos terrenos. Contemplava era o que no céu se cultiva: plantação de nuvem, rabisco de pássaro. E via os flamingos, setas rapidando-se furtivas pelos céus. Meu pai sentava em baixo, na curva das raízes, e apontava os pássaros:
Olha, lá vai mais outro!
O flamingo parecia retardar sua passagem. Depois, minha mãe nos chamava; a mim para baixo e a meu pai para dentro.
Esse homem, esse homem — lamentava ela.
Deixe o pai, mãe. — É que eu carrego tão sozinha as nossas vidas!
Nem sempre meu velho se desocupara, assim, em vastas preguiças. Houve um tempo que ele labutava duro, trabalhara com bichos lá nos matos longínquos. Contudo, o trabalho não lhe fora leal. Antes e depois da Independência ele colhera vastas amarguras. Depois, se arrumara naquele torpor, parado na curva do rio. Para tristeza de minha mãe, que suspirava:
Seu pai não tem comportamento.
O velho Sulplício desvalorizava: sua mãe é como o grilo — tem alergia a silêncios. E se enganava ao pensar que ele nada fazia. Porque ele, consoante anunciava, andava azafamado.
Ando aprender a língua dos pássaros.
Ele gostava era do maduro da manga verde. O Sol, dizia, amadurece de noite. Que fazer? Há coisas que fazem o homem, outras fazem o humano. E suspirava: o tempo é o eterno construtor de antigamentes. Por exemplo, ele. De seu nome Sulplício. Erro de seu destino — tinha sido polícia em tempo dos colonos. Quando aconteceu a Independência ele foi prateleirado, entendido como um que traíra os seus da sua raça.
Foi quando chegou a Tizangara esse Estêvão Jonas. Trazia uma farda lá da guerrilha e as pessoas o olhavam como um pequeno deus. Saíra de sua terra para pegar em armas e combater os colonos. Minha mãe muito se simpatizou com ele. Na altura, dizem, ele não era como hoje. Era um homem que se entregava aos outros, capaz de outroísmos. Partira para além da fronteira sabendo que poderia nunca mais voltar. Ele levara uma mágoa, trouxera um sonho. E era um sonho de embelezar futuros, nenhuma pobreza teria mais esteira.
Esse país vai ser grande.
Minha mãe se recordava de ele declamar essa esperança. Quando nasci, já meu pai deixara a polícia de caça. E já Estêvão Jonas deixara de sonhar em grandes futuros. Morrera o quê dentro dele? Com Estêvão se passou o seguinte: a sua vida esqueceu-se da sua palavra. O hoje comeu o ontem. Com meu pai passou-se o oposto — ele queria viver em nenhum tempo. O resto eu não podia entender. Meu pai saiu de casa ainda eu era menos que um menino. Mas ele não se retirou da vila. Ficou na margem, junto à curva do rio. No mesmo caniçal onde padre Muhando descobrira o seu lugar sagrado. Sempre que o encontrava, meu velho parecia distante. Ele se irreconhecia. Não suportava que lhe perguntassem sobre a sua disposição. Logo ele, amargo, culpando o mundo:
E a terra, a nossa terra, alguém já perguntou se ela se está sentindo bem?
Sulplício amava Tizangara com dedicação de filho. Com o alastrar da guerra muitos fugiram para a capital. Mesmo as autoridades escaparam para lugar seguro. Estêvão Jonas, por exemplo, se apressara em se refugiar na grande cidade. Ao contrário, meu pai sempre anunciou: só sairia do seu refúgio depois de os morcegos lhe abandonarem o telhado. Ele se colara às paredes como um musgo.
Agora, sob a grande sombra do tamarindo, eu fechei os olhos e convoquei saudades. Me apareceu o quê? Um pátio, mas que não era aquele. Porque nesse terreiro havia uma criança. Nas mãos desse menino minha lembrança tocava umas tristezas, coisitas tiradas num lixo. Artes da meninice era fazer dessas coisas um brinquedo. Apetrechos de mago, ele convertia o cosmos num jogo de desmontar. E era qual esse brinquedo? Isso, em meu sonho, eu não conseguia distinguir. Apenas me surgia a enevoada memória da criança escondendo o brinquedo entre as raízes do tamarindo.
Abri os olhos, no estremunho de um ruído. Era meu pai que se achegava.
Está à procura de quê?
De um nada.
Me fez um gesto para que esperasse. Ele se abaixou entre os ramos e retirou uma qualquer coisa.
Será isto aqui que você procura?
Sim, era meu velho brinquedo. Me aproximei devagar, para destrinçar o objeto. E afinal, já em minhas mãos, adivinhei seu formato: era um flamingo. Entre arames e panos eu construíra o animal voador que minha mãe fantasiara em sua estória. O brinquedo parecia agora sobrar em minhas mãos. Lancei o boneco nos ares e as penas brancas e rosa se espalharam nos ares, demorando uma eternidade a tombar. Meu velho apanhou uma dessas plumas e acariciou-a entre os dedos.
Aquele reencontro com minha infância me emprestou inesperada coragem e a pergunta me saiu, sem preparo:
Eu sou mesmo seu filho?
É filho de quem então?
Não sei, a mãe...
As mães, as mães. Que é que ela lhe falou?
Nada, pai. Ela nunca me contou nada.
Pois eu lhe vou dizer uma coisa...
E calou-se. A sua voz se engasgou, parecia ter desistido em meio da garganta. Tentou recomeçar, mas redesistiu. Passou a mão pelo pescoço como se limpasse a voz pelo lado de fora. No enfim de um infinito, ele voltou a falar:
Você é meu filho. E nunca volte a duvidar.
Batia com os dedos sobre os lábios, a lacrar o dito. Até me podia contar como eu fora concebido. Eu não fora gerado logo inicialmente, no início do casamento. Nem de uma só vez. Quando ele e minha mãe namoravam, sempre que o faziam, o céu se desabava em chuva. Debaixo do dilúvio, o casal se prosseguira amando. Faz conta não houvesse mundo nem chuva. Tinham suas razões: pois há ininterruptos anos que eles vinham fabricando seu único primeiro filho. Amavam-se sem paragem. De cada vez que seus corpos se cruzavam, diziam, estavam fabricando mais uma porção do corpinho do vindouro.
Esta noite vamos fazer-lhe os olhos.
Como fosse esse o produto dessa noite, eles escolheram fazer amor sob o inteiro luar. Escolheram um descampado bem debaixo da lua. E assim fizeram, iluaminados, dando seguimento à confecção do menino. Quantos tempos andaram nisso? Se encolhiam os ombros: um menino completo pode demorar mais que a vida.
Está-me entender, filho? Você foi concebido em toda minha vida.
A suspeita me assaltava: Sulplício imaginava aquela estória, naquele preciso momento. Me fabricava descendente. Se eternizava, fosse em ilusão. Porém, eu aceitava. Afinal, tudo é crença. De repente, ele mudou o assunto, cento e oitenta graus:
E o estrangeiro?
Massimo? Ficou na pensão.
Não deixe nunca que ele mande em si.
Eu que andasse com ele, porque andar com um branco me podia acrescentar respeitos. Mas ser mandado, isso nunca. Mesmo os brancos do passado nunca governaram. Nós apenas lhes demos, com nossa fraqueza, a ilusão que nos governavam.
Nem estes de agora, estes nossos irmãos, colonos de dentro, mandam como pensam.
De repente, se cansou de fiar conversa e fez questão em se retirar. Antes, me avisou:
Deixaram aí em cima da mesa umas papeladas para si.
Quem?
Esse vigarista do Chupanga. Disse que não queria deixar na pensão por causa desse italiano.
Abri o envelope. Pela primeira vez, senti o medo me invadindo ao ler o escrito do administrador. Como se as palavras dele me espiassem a mim.
Mia Couto, in O último voo do flamingo

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