Não
conhecia Alumínio, um município paulista perto de São Roque, uma
cidade histórica cercada por serras. No passado, esse relevo verde
fazia parte da Mata Atlântica. Hoje, apenas um parque sobreviveu a
essa floresta. Fundada há mais de quatro séculos por bandeirantes,
a história de São Roque — capela, fazenda e escravos — diz
muito sobre a história de São Paulo e do Brasil.
Mas
Alumínio, muito mais recente, também tem uma história. A diretora
da biblioteca me mostrou com orgulho várias fotografias antigas de
seu município. Vi a estação ferroviária de Rodovalho, construída
em 1899; vi a imagem de um trem que atravessava o vale; vi
trabalhadores negros vigiados por um capataz que, na foto, está de
costas e usa um chapéu branco; vi enormes manchas escuras que
formavam a mata exuberante das serras. E, quando olhei através da
janela da biblioteca, vi um relevo de eucaliptos, como se fossem
bosques tristes na paisagem de Alumínio.
Perguntei
à diretora da biblioteca quem tinha sido Rodovalho.
“O
dono de uma fábrica de cimento”, ela disse. Depois acrescentou:
“Coronel Rodovalho: Antônio Proost Rodovalho”.
“Proust?”,
perguntei, soletrando o sobrenome do grande escritor francês.
“Proost”,
ela soletrou, mitigando minha obsessão pela literatura.
O
que pode fazer uma única vogal! Olhei o céu de Alumínio e, sob
esse céu cor de cimento, avistei um amontoado de casas inacabadas,
erguidas na mesma serra que acabara de ver numa fotografia antiga.
Disse a mim mesmo que a paisagem urbana não é menos tenebrosa que a
natureza devastada. Perguntei à diretora o nome do bairro que roía
a serra.
“Alvorada.
Os estudantes já chegaram, mas ainda temos tempo para um café.”
Tomei
um gole e, enquanto relia o roteiro da minha palestra, a chuva caiu
com um estrondo. Gotas grossas, pesadas e ruidosas, que desabavam
inesperadamente e me recordaram a chuvarada no equador e o cheiro da
floresta.
Alvorada
é também o nome de um bairro pobre de Manaus, um bairro que eu
havia esquecido e agora reaparecia na minha memória, com suas casas
de madeira amontoadas à beira de um igarapé sujo. Nas tardes de
sábado eu dava uma carona para Eliandra, a faxineira do edifício
onde eu morava. Entrava no bairro, um labirinto de ruas estreitas e
esburacadas, e deixava Eliandra perto de uma escada íngreme, que ela
subia até alcançar uma rua de terra no alto de um barranco.
Uma
tarde, quando visitei sua casa, ela me disse que morava com um
motorista de caminhão, mas não conheci esse homem. A casa de
madeira, com fachada de tábuas empenadas e sem pintura, debruçava-se
sobre um abismo. Eliandra me serviu café e bolo de macaxeira. Abriu
um álbum, onde vi imagens de passeios pelo rio Negro, ela e o
motorista no convés de um barco de linha. Eram felizes, ou pareciam
felizes naquele passeio. A casa era apenas um quarto, uma saleta e
uma cozinha. O banheiro ficava do lado de fora e não havia esgoto.
Perguntei se ela estudava ou se tinha estudado.
“Não,
mas quero muito. Ganho um dinheirinho costurando roupa, cortinas,
toalhas de mesa… Costuro qualquer coisa, mas é a faxina que me dá
sustento.”
Quando
dei a última carona, ela me revelou que morava sozinha, o motorista
tinha sumido no ano anterior: “Foi embora sem me dizer uma palavra.
Nem um bicho faz isso”.
Chorou
quando eu disse que ia morar longe de Manaus. Mas quis ficar com o
meu gato de estimação e prometeu que ia cuidar dele. “Como se
fosse meu”, ela disse.
Quando
a chuva parou, tomei mais um gole de café e me dirigi ao auditório
da biblioteca de Alumínio.
E
assim começou minha viagem literária pelo interior de São Paulo.
Milton
Hatoum, in Um
solitário à espreita
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