sábado, 14 de outubro de 2017

O menino de Lewis

Gosto muito de uma ideia feroz de João Cabral de Melo Neto: “Escrever é estar no extremo de si”. Nessa última fronteira, em que o eu se desvanece, o escritor pisa a parte mais inóspita de si mesmo – aquela em que se transforma em outro. Literatura não é confissão, é invenção. Para refletir sobre isso, nada melhor do que reler, hoje, Um experimento na crítica literária, do irlandês C.S. Lewis (1898-1963), editora Unesp, tradução de João Luís Ceccantini. Um livro em que a literatura se afirma como enigma e aventura. E no qual o leitor, não mais reduzido à figura de um hermeneuta, ou, ao contrário, de um diletante, se torna, ele também, um inventor.
C.S. Lewis começa com uma crítica corajosa do apartheid que (ainda hoje) separa os autores profissionais, ou “cultos”, dos leitores leigos, ou “comuns”. Para ilustrar seu desconforto, ele recorda uma dolorosa experiência pessoal. Certa vez, na universidade, dividiu uma banca de exames com um velho amigo. A apresentação do trabalho já terminara, mas, entusiasmado, Lewis continuava a comentar o que tinha ouvido. A advertência de seu colega de banca foi assustadora: “Bom Deus, você ainda quer continuar com isso depois do expediente? Você não ouviu o sinal tocar?”.
Professor de prestígio, Lewis nem por isso abdicou da paixão pela literatura. Afastando-se dos leitores profissionais, que leem com as mãos revestidas de luvas e com o cronômetro em punho, ele faz uma defesa firme do leitor “comum”. Aquele que lê sem nada esperar, que lê simplesmente porque o livro o agarra e ele não consegue mais largá-lo. Nas famílias dos nobres especialistas, Lewis diz, muitas vezes a única experiência literária se passa “em um quartinho dos fundos, onde um garotinho lê A ilha do tesouro sob os cobertores, à luz de uma lanterna”. Esse menino que se abraça a um livro e que suja sua alma de palavras é, ele nos mostra, o protótipo do grande leitor.
Armados até os dentes, os leitores puritanos descartam (como perigoso) qualquer vínculo intenso com a literatura. Lewis, ao contrário, aposta que nessa ligação íntima está quase tudo. Ninguém pode acusá-lo de ser um defensor da ignorância ou do obscurantismo. Basta lembrar que, na universidade, ele se tornou conhecido por seu rigoroso trabalho sobre a literatura medieval. Não é a posição que ocupa que define a qualidade de um leitor. Um leitor leigo pode ser só isto mesmo: superficial, relaxado e preguiçoso. A questão não é onde se lê – se em uma espreguiçadeira de praia ou em uma cátedra na universidade –, mas como se lê.
Ao garotinho que se agarra a A ilha do tesouro faltam, por certo, a erudição e a lucidez do professor. Mas, quando o alarme soa, ele o ignora e continua mergulhado em seu livro. Quando lê o romance de Stevenson, Lewis nos faz ver, esse menino está “dentro” do livro. Ele não o lê; ele o habita. Já o professor age como um anatomista que, com bons argumentos e instrumentos afiados, disseca um cadáver. Com o coração aos trancos, o garotinho, em vez de retalhar o cadáver, o ressuscita.
Mas o que nos liga a uma ficção? Recorda Lewis que, se muitos leitores iletrados confundem a literatura com a realidade – e com isso não conseguem reconhecer a existência da literatura –, muitos leitores puritanos transformam (reduzem) a literatura a um ramo da filosofia, ou da teologia, ou da psicologia. Em outras palavras: fazem da literatura um instrumento de conhecimento – transformam-na em uma pinça, com que revolvem o real. Resultado: não reconhecem a existência da literatura também.
Uma ficção, lembra Lewis, “não deve significar, mas ser”. Escritores não dão lições nem defendem teses; eles descerram janelas, abrem caminhos, fundam novos mundos. É claro: um grande livro termina, sempre, por ampliar a visão que temos de nosso mundo. Mas o livro não é a ilustração de um saber consagrado; tampouco é um aferidor de verdades. Ao inaugurar um mundo inteiramente novo, a literatura é uma invenção que, em vez de explicar e dissecar a realidade, a potencializa e amplia.
A maioria dos leitores, profissionais ou leigos, não suporta essa experiência. “Estamos tão ocupados atuando sobre a obra que damos a ela pouca chance de atuar sobre nós”, Lewis adverte. Livros não são enxadas com que revolvemos o chão. A grande leitura não exige perícia ou força; exige, ao contrário, desarme e paixão. Daí a necessidade de retomar contato com aquele menino que, cheio de espanto e agarrado a seu cobertor, contando só com uma lanterna, se lança de corpo inteiro no livro que lê.
A literatura, Lewis insiste, não é uma crença ou um saber organizado. Se é saber, é um saber desorganizado. Não é crença, no máximo uma descrença. Não é religião, filosofia, uma escola de ética, uma psicoterapia. Literatura é literatura – um mundo à parte, que não se confunde com nenhum outro. E, só por isso, porque não deve nada a ninguém, ela consegue nos agitar e seduzir. E, quem sabe, nos modificar.
Lembra Lewis que a literatura “não é meramente logos (algo dito), mas poiema (algo feito)”. Quando abrimos um livro, entramos em um mundo paralelo, e desconhecido, desde o qual podemos observar melhor o nosso. Assim que pisamos esse “algo feito”, como frágeis aventureiros que contam só com sua coragem, alguma coisa enfim se move. A literatura não é o lugar das grandes teses nem das grandes demonstrações. Não é a terra da retórica ou das teorias peremptórias. Não é uma transmissão, mas uma provocação. Os leitores que interessam a Lewis são aqueles que, como o menino do cobertor, abandonam toda uma vida de certezas em troca de um velho mapa, um cozinheiro perneta e meia dúzia de piratas barbudos.
Pensando nas palavras de Lewis, voltam-me os versos de João Cabral, agora a propósito do poeta francês Paul Valéry: “Sem nenhum medo, deu-se ao luxo/ de mostrar que o fazer é sujo”. Aventuras não se vivem com as mãos limpas. Ninguém tem o rosto mais sujo do que o menino que, imóvel em sua cama, devora um romance de Stevenson. A literatura lhe basta – e ele não está mais ali.
José Castello, in Sábados inquietos

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