Gosto
muito de uma ideia feroz de João Cabral de Melo Neto: “Escrever é
estar no extremo de si”. Nessa última fronteira, em que o eu se
desvanece, o escritor pisa a parte mais inóspita de si mesmo –
aquela em que se transforma em outro. Literatura não é confissão,
é invenção. Para refletir sobre isso, nada melhor do que reler,
hoje, Um experimento na crítica literária, do irlandês C.S.
Lewis (1898-1963), editora Unesp, tradução de João Luís
Ceccantini. Um livro em que a literatura se afirma como enigma e
aventura. E no qual o leitor, não mais reduzido à figura de um
hermeneuta, ou, ao contrário, de um diletante, se torna, ele também,
um inventor.
C.S.
Lewis começa com uma crítica corajosa do apartheid que
(ainda hoje) separa os autores profissionais, ou “cultos”, dos
leitores leigos, ou “comuns”. Para ilustrar seu desconforto, ele
recorda uma dolorosa experiência pessoal. Certa vez, na
universidade, dividiu uma banca de exames com um velho amigo. A
apresentação do trabalho já terminara, mas, entusiasmado, Lewis
continuava a comentar o que tinha ouvido. A advertência de seu
colega de banca foi assustadora: “Bom Deus, você ainda quer
continuar com isso depois do expediente? Você não ouviu o sinal
tocar?”.
Professor
de prestígio, Lewis nem por isso abdicou da paixão pela literatura.
Afastando-se dos leitores profissionais, que leem com as mãos
revestidas de luvas e com o cronômetro em punho, ele faz uma defesa
firme do leitor “comum”. Aquele que lê sem nada esperar, que lê
simplesmente porque o livro o agarra e ele não consegue mais
largá-lo. Nas famílias dos nobres especialistas, Lewis diz, muitas
vezes a única experiência literária se passa “em um quartinho
dos fundos, onde um garotinho lê A ilha do tesouro sob os
cobertores, à luz de uma lanterna”. Esse menino que se abraça a
um livro e que suja sua alma de palavras é, ele nos mostra, o
protótipo do grande leitor.
Armados
até os dentes, os leitores puritanos descartam (como perigoso)
qualquer vínculo intenso com a literatura. Lewis, ao contrário,
aposta que nessa ligação íntima está quase tudo. Ninguém pode
acusá-lo de ser um defensor da ignorância ou do obscurantismo.
Basta lembrar que, na universidade, ele se tornou conhecido por seu
rigoroso trabalho sobre a literatura medieval. Não é a posição
que ocupa que define a qualidade de um leitor. Um leitor leigo pode
ser só isto mesmo: superficial, relaxado e preguiçoso. A questão
não é onde se lê – se em uma espreguiçadeira de praia ou em uma
cátedra na universidade –, mas como se lê.
Ao
garotinho que se agarra a A ilha do tesouro faltam, por certo,
a erudição e a lucidez do professor. Mas, quando o alarme soa, ele
o ignora e continua mergulhado em seu livro. Quando lê o romance de
Stevenson, Lewis nos faz ver, esse menino está “dentro” do
livro. Ele não o lê; ele o habita. Já o professor age como um
anatomista que, com bons argumentos e instrumentos afiados, disseca
um cadáver. Com o coração aos trancos, o garotinho, em vez de
retalhar o cadáver, o ressuscita.
Mas
o que nos liga a uma ficção? Recorda Lewis que, se muitos leitores
iletrados confundem a literatura com a realidade – e com isso não
conseguem reconhecer a existência da literatura –, muitos leitores
puritanos transformam (reduzem) a literatura a um ramo da filosofia,
ou da teologia, ou da psicologia. Em outras palavras: fazem da
literatura um instrumento de conhecimento – transformam-na em uma
pinça, com que revolvem o real. Resultado: não reconhecem a
existência da literatura também.
Uma
ficção, lembra Lewis, “não deve significar, mas ser”.
Escritores não dão lições nem defendem teses; eles descerram
janelas, abrem caminhos, fundam novos mundos. É claro: um grande
livro termina, sempre, por ampliar a visão que temos de nosso mundo.
Mas o livro não é a ilustração de um saber consagrado; tampouco é
um aferidor de verdades. Ao inaugurar um mundo inteiramente novo, a
literatura é uma invenção que, em vez de explicar e dissecar a
realidade, a potencializa e amplia.
A
maioria dos leitores, profissionais ou leigos, não suporta essa
experiência. “Estamos tão ocupados atuando sobre a obra que damos
a ela pouca chance de atuar sobre nós”, Lewis adverte. Livros não
são enxadas com que revolvemos o chão. A grande leitura não exige
perícia ou força; exige, ao contrário, desarme e paixão. Daí a
necessidade de retomar contato com aquele menino que, cheio de
espanto e agarrado a seu cobertor, contando só com uma lanterna, se
lança de corpo inteiro no livro que lê.
A
literatura, Lewis insiste, não é uma crença ou um saber
organizado. Se é saber, é um saber desorganizado. Não é crença,
no máximo uma descrença. Não é religião, filosofia, uma escola
de ética, uma psicoterapia. Literatura é literatura – um mundo à
parte, que não se confunde com nenhum outro. E, só por isso, porque
não deve nada a ninguém, ela consegue nos agitar e seduzir. E, quem
sabe, nos modificar.
Lembra
Lewis que a literatura “não é meramente logos (algo dito), mas
poiema (algo feito)”. Quando abrimos um livro, entramos em um mundo
paralelo, e desconhecido, desde o qual podemos observar melhor o
nosso. Assim que pisamos esse “algo feito”, como frágeis
aventureiros que contam só com sua coragem, alguma coisa enfim se
move. A literatura não é o lugar das grandes teses nem das grandes
demonstrações. Não é a terra da retórica ou das teorias
peremptórias. Não é uma transmissão, mas uma provocação. Os
leitores que interessam a Lewis são aqueles que, como o menino do
cobertor, abandonam toda uma vida de certezas em troca de um velho
mapa, um cozinheiro perneta e meia dúzia de piratas barbudos.
Pensando
nas palavras de Lewis, voltam-me os versos de João Cabral, agora a
propósito do poeta francês Paul Valéry: “Sem nenhum medo, deu-se
ao luxo/ de mostrar que o fazer é sujo”. Aventuras não se vivem
com as mãos limpas. Ninguém tem o rosto mais sujo do que o menino
que, imóvel em sua cama, devora um romance de Stevenson. A
literatura lhe basta – e ele não está mais ali.
José
Castello, in Sábados inquietos
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