segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Nancy Cunard

Nancy Cunard em foto de 1928 

Decidimos com Nancy Cunard fazer uma publicação de poesia que intitulei Los poetas del mundo defiendem al pueblo español.
Nancy tinha uma pequena gráfica em sua casa de campo, na província francesa. Não me lembro do nome da localidade mas era longe de Paris. Quando chegamos à sua casa já era noite. Havia lua. A neve e a lua estremeciam como uma cortina ao redor da propriedade. Eu, entusiasmado, saí para passear. Na volta os flocos de neve amontoaram-se sobre minha cabeça com gelada obstinação. Perdi completamente o rumo e andei meia hora às tontas na brancura da noite.
Nancy tinha experiência de gráfica. Quando tinha sido companheira de Aragon, publicou a tradução do “Huting of the Snark”, feita por Aragon e por ela. Na verdade este poema de Lewis Carroll é intraduzível e creio que só em Góngora acharíamos um trabalho semelhante de mosaico louco.
Pus-me pela primeira vez a lidar com os tipos e acho que nunca houve um tipógrafo pior. Como eu imprimia as letras p ao contrário, ficavam convertidas em d por minha incompetência tipográfica. Um verso em que aparecia duas vezes a palavra párpados acabou convertido em duas vezes dardapos. Por vários anos Nancy me castigou chamando-me dessa maneira. “My dear Dardapo...”, assim começavam suas cartas vindas de Londres. Mas a publicação saiu muito correta e conseguimos imprimir seis ou sete números. Além de poetas militantes, como González Tuñón ou Alberti, ou alguns franceses, publicamos apaixonados poemas de W. H. Auden, Spender, etc. Estes cavalheiros ingleses não saberão nunca o que sofreram meus dedos preguiçosos compondo seus versos.
De quando em vez chegavam da Inglaterra poetas dandys, amigos de Nancy, com flor branca na lapela, que também escreviam poemas antifranquistas. Não houve na história intelectual uma essência tão fértil para os poetas como a guerra espanhola. O sangue espanhol exerceu um magnetismo que fez tremer a poesia de uma grande época.
Não sei se a publicação teve êxito ou não porque por esse tempo terminou mal a guerra da Espanha e começou mal outra nova guerra mundial. Esta última, apesar de sua magnitude, apesar de sua crueldade incomensurável, apesar de seu heroísmo derramado, não conseguiu nunca envolver como a espanhola o coração coletivo da poesia.
Pouco depois teria que regressar da Europa para meu país. Nancy também viajaria logo para o Chile, acompanhada por um toureiro que em Santiago deixou os touros e Nancy Cunard para instalar uma venda de salsichas e outros chouriços. Mas minha queridíssima amiga, esnobe da mais alta qualidade, era invencível. No Chile tomou como amante um poeta vagabundo e desalinhado, chileno de origem basca, não desprovido de talento mas sim de dentes. Além disso, o novo favorito de Nancy era um beberrão e dava na aristocrática inglesa frequentes surras noturnas que a obrigavam a aparecer em público com grandes óculos escuros.
Na verdade ela foi um dos personagens quixotescos, crônicos, valentes e patéticos mais curiosos que eu já conheci. Herdeira única da “Cunard Line”, filha de Lady Cunard, Nancy escandalizou Londres lá pelo ano de 1930, fugindo com um negro, músico de um dos primeiros jazz bands importados pelo Hotel Savoy.
Quando Lady Cunard encontrou a cama vazia de sua filha e uma carta dela em que comunicava orgulhosamente seu negro destino, a nobre senhora dirigiu-se ao advogado e iniciou o processo para deserdá-la. Assim, pois, o que conheci, errante pelo mundo, foi uma preterida da grandeza britânica. O salão da mãe era freqüentado por Georges Moore (de quem se sussurrava que era o verdadeiro pai de Nancy), Sir Thomas Beecham, o jovem Aldous Huxley e o que depois foi o Duque de Windsor, então Príncipe de Gales.
Nancy Cunard revidou o golpe. Em dezembro do ano em que foi excomungada por sua mãe, toda a aristocracia inglesa recebeu como presente de Natal um folheto de capa vermelha intitulado Negro man and white Ladyship. Não vi nada mais corrosivo, atingindo às vezes a malignidade de Swift.
Seus argumentos em defesa dos negros foram como uma paulada na cabeça de Lady Cunard e da sociedade inglesa. Lembro o que lhes dizia e cito de memória porque suas palavras eram mais eloquentes:
Se você, branca Senhora, ou melhor, os seus tivessem sido sequestrados, golpeados e acorrentados por uma tribo mais poderosa e depois transportados para longe da Inglaterra para serem vendidos como escravos, mostrados como exemplos irrisórios da fealdade humana, obrigados a trabalhar debaixo de chicotadas e mal alimentados, que teria subsistido de sua raça? Os negros sofreram estas violências e crueldades e muitas mais. Depois de séculos de sofrimento, eles no entanto são os melhores e mais elegantes atletas e criaram uma nova música mais universal que nenhuma outra. Poderiam vocês, brancos como você é, ter saído vitoriosos de tanta iniquidade? Então: quem vale mais?”
E assim por trinta páginas.
Nancy não pôde voltar a morar na Inglaterra e desde esse momento abraçou a causa da raça negra perseguida. Durante a invasão da Etiópia foi a Adis Abeba. Depois chegou aos Estados Unidos para solidarizar-se com os rapazes negros de Scottsboro acusados de infâmias que não cometeram. Os jovens negros foram condenados pela justiça racista norte-americana e Nancy foi expulsa pela polícia democrática norte-americana.
Em 1969 minha amiga Nancy Cunard morreria em Paris. Numa crise de sua agonia desceu quase nua pelo elevador do hotel. Ali desfaleceu e fecharam-se para sempre seus belos olhos azuis.
Pesava trinta e cinco quilos quando morreu. Era só um esqueleto. Seu corpo tinha se consumido numa longa batalha contra a injustiça no mundo. Não recebeu outra recompensa além de uma vida cada vez mais solitária e uma morte desamparada.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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