quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Moral

Mas o dia seguinte! o terrível dia seguinte! todos os órgãos relaxados, cansados, os nervos acalmados, os titilantes desejos de chorar, a impossibilidade de se dedicar a um trabalho contínuo, mostram-lhe cruelmente que você se entregou a um jogo proibido. A natureza medonha, despojada de sua iluminação da véspera, assemelha-se aos restos melancólicos de uma festa. A vontade, sobretudo, é atacada, de todas as faculdades a mais preciosa. Dizem, e é quase verdade, que esta substância não causa nenhum mal físico, nenhum mal grave, ao menos. Mas é possível afirmar que um homem incapaz de ação, e próprio somente aos sonhos, se portaria realmente bem, mesmo quando todos os seus membros estivessem em bom estado? Ora, conhecemos bem a natureza humana para saber que um homem que pode, com uma colherada de confeito, alcançar instantaneamente todos os bens do céu e da terra, não ganharia jamais a milésima parte destes bens pelo trabalho. É possível imaginar um Estado onde todos os cidadãos se embriagassem de haxixe? Que cidadãos! que guerreiros! que legisladores! Mesmo no Oriente, onde o seu uso é tão difundido, há governos que compreenderam a necessidade de proscrevê-lo. Na verdade, é proibido ao homem, sob pena de degradação e morte intelectual, de desordenar as condições primordiais de sua existência e de romper o equilíbrio de suas faculdades com o meio onde elas estão destinadas a se moverem, em uma palavra, de desordenar seu destino para substituí-lo por uma fatalidade de gênero novo. Lembremo-nos de Melmoth, este admirável símbolo. Seu sofrimento assustador jaz na desproporção entre suas maravilhosas faculdades, adquiridas instantaneamente por um pacto satânico, e o meio em que, como criatura de Deus, está condenado a viver. E nenhum daqueles que quer seduzir consente em comprar-lhe, nas mesmas condições, seu terrível privilégio. Na verdade, todo homem que não aceita as condições da vida, vende sua alma. É fácil perceber a relação que existe entre as criações satânicas dos poetas e as criaturas vivas que se devotam aos excitantes. O homem quis ser Deus e, em seguida, ei-lo, em virtude de uma lei moral incontrolável, posto abaixo de sua real natureza. É uma alma que se vende a granel.
Balzac pensava sem dúvida que não há para o homem vergonha maior nem sofrimento mais vívido que a abdicação de sua vontade. Eu o vi uma vez, em uma reunião onde se tratava dos efeitos prodigiosos do haxixe. Ele escutava e questionava com uma atenção e uma vivacidade divertidas. As pessoas que o conheciam supõem que ele devia estar interessado. Mas a ideia deste desejo mesmo que involuntária, chocava-o vivamente. Apresentaram-lhe um pouco de dawamesk; ele o examinou, cheirou e devolveu sem tocar. A luta entre sua curiosidade quase infantil e sua repugnância à renúncia traía-se em seu rosto de maneira tocante. Conduzia-o o amor pela dignidade. Na verdade, é difícil imaginar o teórico da vontade, este gêmeo espiritual de Louis Lambert, consentindo em perder uma parcela desta preciosa substância.
Apesar dos admiráveis serviços prestados pelo éter e pelo clorofórmio, parece-me que, do ponto de vista da filosofia espiritualista, o mesmo estigma moral se aplica a todas as invenções modernas que tendem a diminuir a liberdade humana e a indispensável dor. Não foi sem uma certa admiração que ouvi uma vez o paradoxo de um oficial que me contava a operação cruel feita em um general francês em El-Aghouat, e da qual este morreu apesar do clorofórmio. O general era um homem valente e até algo mais, uma destas almas a quem se aplica naturalmente o termo: cavalheiresco. “Não era”, disse-me ele, “o clorofórmio o que lhe faltava, mas os olhares de todo o seu exército e a música dos regimentos. Desta forma, talvez pudesse ser salvo!” O cirurgião não era da mesma opinião que o oficial; mas o capelão teria, sem dúvida, admirado este sentimento.
É realmente supérfluo, após todas estas considerações, insistir no caráter imoral do haxixe. Mesmo que eu o compare ao suicídio, a um suicídio lento, a uma arma sempre sanguinolenta e sempre afiada, nenhum espírito razoável terá em que me censurar. Mesmo que eu o associe à feitiçaria, à magia, que querem, ao operarem sobre a matéria, e por meio de arcanos, cuja falsidade não pode ser melhor provada que sua eficiência, conquistar um domínio proibido ao homem ou permitido somente àquele considerado digno, nenhuma alma filosófica criticará esta comparação. Se a Igreja condena a magia e a feitiçaria, é que elas militam contra as invenções de Deus, suprimem o trabalho do tempo e querem tornar supérfluas as condições de pureza e moralidade; e que ela, a Igreja, apenas considera legítimos, verdadeiros, os tesouros ganhos pela boa intenção assídua. Chamamos de trapaceiro o jogador que achou um meio de jogar para ganhar infalivelmente; como denominaremos o homem que quer comprar, com alguns trocados, a felicidade e o gênio? É a própria infalibilidade do meio que constitui a imoralidade, como a suposta infalibilidade da magia lhe impõe seu estigma infernal. Seria necessário acrescentar que o haxixe, como todos os prazeres solitários, torna o indivíduo inútil aos homens e a sociedade supérflua para o indivíduo, levando-o a se admirar a si próprio sem cessar e empurrando-o, dia a dia, ao abismo luminoso onde ele admira sua face de Narciso?
E se ainda, à custa de sua dignidade, de sua honestidade e de seu 1ivre arbítrio, o homem pudesse tirar do haxixe grandes benefícios espirituais, fazer dele uma espécie de máquina de pensar, um instrumento fecundo? É uma indagação que ouvi sempre ser feita e a respondo. Primeiramente, como expliquei longamente, o haxixe não revela ao indivíduo nada além do próprio indivíduo. É verdade que este indivíduo é, por assim dizer, elevado ao cubo e levado ao extremo. E como é igualmente certo que a memória das impressões sobrevive à orgia, a esperança destes utilizadores não parece à primeira vista totalmente desprovida de razão. Mas rogarei que observem que os pensamentos, dos quais contam com tirar um partido tão grande, não são realmente tão belos quanto parecem em seus disfarces momentâneos e recobertos de ouropéis mágicos. Tais pensamentos estão mais para a terra que para o céu, e devem uma grande parte de sua beleza à agitação nervosa, à avidez com a qual o espírito se lança sobre eles. Em seguida, esta esperança é um círculo vicioso: admitindo por um instante que o haxixe suscita ou pelo menos aumenta o gênio, esquecem que é da natureza do haxixe diminuir a vontade e que, desta forma, dá de um lado o que tira do outro, isto é, a imaginação sem a faculdade de dela tirar proveitos. Enfim, há que sonhar, imaginando um homem correto e vigoroso o suficiente para se preservar esta alternativa, deste outro perigo, fatal, terrível, que é o de todos os hábitos. Todos se transformam logo em necessidade. Aquele que puder recorrer a um veneno para pensar, em breve não poderá mais pensar sem veneno. É possível supor o terrível destino de um homem cuja imaginação paralisada não soubesse mais funcionar sem o recurso do haxixe ou do ópio?
Nos estudos filosóficos, o espírito humano, à imitação da marcha dos astros, deve seguir uma curva que o devolva a seu ponto de partida. Concluir é fechar um círculo. No começo, falei deste estado maravilhoso onde o espírito do homem se encontrava, às vezes, lançado como que por uma graça especial; disse que ao ansiar incessantemente a reanimação de suas esperanças e a sua elevação ao infinito ele mostrava, em todos os países e em todos os tempos, um gosto frenético por todas as substâncias, mesmo que perigosas, e, ao exaltar sua personalidade, pudessem suscitar por um instante aos seus olhos este paraíso de segunda mão, objeto de todos os seus desejos e disse, enfim, que este espírito arrojado levado, sem o saber, até o inferno, confirmava assim a sua grandeza original. Mas o homem não está tão abandonado, tão privado de meios honestos para ganhar o céu, a ponto de ser obrigado a invocar as drogas e a feitiçaria, não é necessário vender sua alma para pagar as carícias embriagantes e a amizade das huris. Que paraíso é este comprado à custa de sua saúde eterna? Imagino um homem (um brâmane? um poeta? um filósofo cristão?) colocado no árduo Olimpo da espiritualidade, à sua volta as Musas de Rafael ou de Mantegna, para consolá-lo de seus longos jejuns e de suas preces assíduas, combinam-se nas mais nobres, olham-no com seus mais doces olhares e seus mais iluminados sorrisos; o divino Apolo, mestre em tudo saber (o de Francavilla, de Albert Durer, de Goltzius ou de qualquer outro, que importa? não há um Apolo para todo homem que o mereça?), acaricia com seu arco as cordas mais vibrantes. Abaixo dele, ao pé da montanha, nas sarças e na lama, a multidão dos humanos, o bando dos párias, simula os esgares do prazer e solta urros provocados pelas dentadas do veneno; e o poeta entristecido diz a si mesmo: “Estes infortunados que não jejuaram, nem oraram e que recusaram a redenção pelo trabalho, buscam na magia negra os meios de se elevarem, de uma só vez, à existência sobrenatural. A magia os engana e acende para eles uma falsa felicidade e uma falsa luz; enquanto nós, poetas e filósofos, regeneramos nossa alma pelo trabalho sucessivo e pela contemplação; pelo exercício assíduo da vontade e pela nobreza permanente da intenção, criamos para nosso uso um jardim de beleza verdadeira. Confiantes na promessa que diz que a fé remove montanhas, realizamos o único milagre cuja licença nos foi concedida por Deus!”
Charles Baudelaire, in Paraísos artificiais

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