terça-feira, 3 de outubro de 2017

Inverno

A paixão apagou.
Sumiu.
Devagarinho, talvez, ou então de vez, como uma bolha de sabão, o fato é que se foi.
Paixão, cadê você?
Não existe mais?
Não faz mal não.
Dizem que depois da paixão fica o amor. (Às vezes.)
É quando a doidice sossega, a agonia desaperta, o pensamento serena, a vida acena com outras possibilidades, a sanidade retorna, a realidade se reapresenta: Lua é Lua, noite é noite, palavras são só palavras e nem todas elas são boas.
Agora sim.
Também, era impossível viver ardendo naquele fogo, eternamente.
Ainda bem que passou, não cega mais, aquilo já era um inferno.
Melhor assim, sem tanto calor.
Já dá pra respirar melhor.
Dá até pra raciocinar, eu sou eu, você é você, e nós dois juntos somos dois.
É só somar.
Se eu quero isso e você quer aquilo, tudo bem. (É impressão minha ou o querer da gente coincidia sempre antes? Esquece.) Nada melhor do que se sentir de novo uma pessoa.
Eu vou pra cá, você vai pra lá, mais tarde a gente se vê.
Agora eu preciso olhar as garotas saindo das escolas com seus moletons, de preferência com as mangas sobrando para fora das mãos, tomar um café, depois um licor, usar meu chapéu, sabe quando a pessoa está incrivelmente necessitada de dançar na chuva?
Você faz o que quiser: cinema, teatro, boteco, futebol, o controle remoto é todo seu.
Antes de dormir a gente se encontra embaixo do cobertor eu e você, dois, mais esse friozinho, três. Vai ser ótimo. Muito agradável. Confortável. Calmo. Tranquilo.
Reconheça: não é muito mais fácil viver assim, desafogado, do que naquela tormenta?
Não ouviu o que eu falei?
Deixa pra lá.
Está bom aí, em você?
Aqui em mim está um fracasso, eu confesso.
Que tal meia garrafa de vinho, uma lareira, uma música antiga, qualquer coisa?
Não tem mais jeito?
A paixão não volta?
Quem disse?
A lógica? A química, a física e a biologia? Toda e qualquer estatística? O funcionamento hormonal? O passar do tempo?
Pois então danem-se todos eles.
Você está com 21 e eu com 19, frente a frente, enlouquecidos. Então você tem 33. (De presente de aniversário eu até escrevi uns versos, mas você continuava preferindo beijos.) De repente, eu me dou conta, já fiz 40 e continuo louca. Quando você tiver 58, estaremos mais encantados ainda. Viraremos matéria de pesquisa, objeto de museu, motivo de inveja, o mundo inteiro comentando “tá vendo aqueles dois? Que loucura. Que grude. Que estranho. Eu acho que é mentira. Será? Sei lá. Que coisa!”.
Deixa falar.
Não liga não.
Então, vai: me tira pra dançar.
Agora, sim, qual o problema?
Depois eu termino a crônica.
Adriana Falcão, in O doido da garrafa

Nenhum comentário:

Postar um comentário