quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Com o amolador

Levei o envelope para casa e o entreguei à minha mãe e segui direto para o quarto. Meu quarto. A melhor coisa que havia ali era a cama. Gostava de ficar deitado por horas, mesmo durante o dia, com as cobertas puxadas até o queixo. Era bom ficar ali, nada acontecia por ali, nenhuma pessoa, nada. Minha mãe com frequência me encontrava enterrado na cama durante o dia.
Henry, se levante! Não é bom para um garoto da sua idade ficar deitado na cama o dia inteiro! Vamos, levante agora mesmo! Vá fazer alguma coisa!
Não havia, no entanto, nada para fazer.
Não fui para a cama naquele dia. Minha mãe estava lendo o bilhete. Logo a ouvi chorar. E depois começaram as lamentações.
Oh, meu Deus! Você desgraçou seu pai e a mim! É uma desgraça. Imagine se os vizinhos descobrirem? O que vão pensar?
Eles jamais falavam com seus vizinhos.
Então a porta se abriu, e mamãe entrou correndo no quarto:
Como você pôde fazer isso com sua pobre mãe?
Lágrimas corriam pela sua face. Senti-me culpado.
Espere até seu pai chegar em casa!
Bateu a porta do quarto e se sentou numa cadeira para esperar. De algum modo, eu me sentia culpado...
Escutei meu pai entrar. Ele sempre batia a porta, caminhava pesadamente e falava aos brados. Ele estava em casa. Depois de alguns instantes, a porta do quarto foi aberta. Tinha 1, 89 de altura, um homem grande. Tudo mais desapareceu: a cadeira em que eu estava sentado, o papel de parede, as próprias paredes, inclusive meus pensamentos. Ele era como a escuridão encobrindo o sol, a violência que ele exalava aniquilava por completo qualquer outra coisa. Ele era todo orelhas, nariz, boca, eu não podia olhar em seus olhos, havia apenas seu rosto vermelho e enfurecido.
Ok, Henry. Para o banheiro.
Entrei e ele fechou a porta atrás de nós. As paredes eram brancas. Havia um espelho e uma pequena janela cuja tela estava enegrecida e quebrada. Havia a banheira, a privada e os azulejos. Ele pegou o amolador da navalha que estava pendurado em um gancho. Seria a primeira de uma série de surras que viriam a ocorrer com mais e mais frequência. Sempre, eu sentia, sem qualquer razão evidente para esses espancamentos.
Certo, baixe as calças.
Baixei.
Baixe a cueca.
Também baixei.
Então ele me bateu com o amolador. O primeiro golpe me causou mais surpresa do que dor. O segundo doeu mais. Cada lambada que se seguia fazia com que a dor aumentasse. No início, ainda tinha consciência das paredes, da privada, da banheira. Por fim, já não enxergava mais nada. Enquanto me batia, aproveitava para me censurar, mas eu não conseguia entender uma palavra sequer. Pensei nas rosas que ele criava, em como ele as cultivava no pátio. Pensei no automóvel que ele tinha na garagem. Tentei não gritar. Eu sabia que se gritasse talvez o fizesse parar, mas por ter consciência disso, por ter consciência de que era justamente esse o seu desejo, eu me segurava. As lágrimas escorriam dos meus olhos enquanto eu permanecia em silêncio. Depois de um tempo, tudo se tornou um turbilhão, uma confusão, e o que restou foi apenas a terrível possibilidade de que aquilo durasse para sempre. Finalmente, como se um mecanismo tivesse sido acionado, comecei a soluçar, engolindo e me sufocando com a gosma salgada que descia pela garganta. Ele parou.
Ele não estava mais lá. Tomei novamente consciência da pequena janela e do espelho. Lá estava o amolador de navalha, pendurado no seu lugar, comprido e marrom e todo torcido. Não conseguia me dobrar para juntar minhas calças e minha cueca e segui caminhando até a porta, desajeitadamente, as roupas arriadas ao redor de meus pés. Abri a porta do banheiro e minha mãe estava em pé no corredor.
Isso não está certo – falei para ela. – Por que você não me ajudou?
O pai – ela disse – está sempre certo.
Então minha mãe se afastou. Fui para o meu quarto, arrastando as roupas nos pés, e me sentei na beirada da cama. O contato com o colchão me doía. Lá fora, através da janela dos fundos, eu podia ver as rosas do meu pai crescendo. Elas eram vermelhas e brancas e amarelas, grandes e viçosas. O sol já ia baixo, mas ainda não havia se posto, e seus últimos raios penetravam ainda pela janela. Tive a impressão de que até mesmo o sol pertencia a meu pai, que eu não tinha nenhum direito sobre ele porque iluminava a casa do meu pai. Eu era como suas rosas, algo que pertencia a ele e não a mim...

Na hora em que me chamaram para o jantar eu consegui puxar minhas roupas e caminhar até a pequena mesa em que fazíamos todas as nossas refeições exceto aos domingos. Havia dois travesseiros sobre o assento da minha cadeira. Sentei em cima deles, mas minhas pernas e minha bunda ainda ardiam. Meu pai falava sobre o seu trabalho, como sempre.
Disse para o Sulivan combinar três rotas em duas e deixar um homem fazer cada deslocamento. Ninguém está dando tudo de si por lá...
Eles deviam ouvi-lo, paizinho – disse minha mãe.
Por favor – eu disse –, por favor, me deem licença, mas não sinto vontade de comer…
Você vai comer sua COMIDA! – disse meu pai. – Sua mãe preparou essa comida!
Sim – disse minha mãe –, cenouras, ervilhas e rosbife.
E o purê de batatas com molho de carne – disse meu pai.
Não sinto fome.
Você vai comer cada cenoura e cada ervilha em seu prato! – disse meu pai.
Ele tentava ser engraçado. Esta era uma de suas observações favoritas.
PAIZINHO! – disse minha mãe, chocada e espantada.
Comecei a comer. Era terrível. Sentia como se os estivesse comendo, comendo as coisas em que acreditavam, aquilo que eles eram. Não mastiguei os alimentos, engoli-os apenas, como que para me livrar da obrigação. Nesse meio tempo, meu pai falava de como aquela comida estava saborosa, de como tínhamos sorte de ter o que comer enquanto a maior parte das pessoas do mundo, e mesmo muitos americanos, viviam na miséria e passavam fome.
O que temos para a sobremesa, mamãe? – perguntou meu pai.
Seu rosto estava horrível, os lábios num biquinho, gordurosos e molhados de prazer. Ele agia como se nada tivesse acontecido, como se não tivesse me espancado. Quando voltei ao meu quarto, pensei: essas pessoas não são meus pais, devem ter me adotado e agora não estão satisfeitos com o que me tornei.
Charles Bukowski, in Misto-quente

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