— Foi
você que disse tudo isso, Dorotea?
— Quem,
eu? Adormeci um pouco. Continuam assustando você?
— Ouvi
alguém falando. Uma voz de mulher. Achei que era você.
— Voz
de mulher? Achou que era eu? Deve ser a que fala sozinha. A da
sepultura grande. Dona Susanita. Está enterrada aqui, ao nosso lado.
A umidade deve ter chegado até ela, que está se revirando no meio
do sono.
— E
quem é ela?
— A
última esposa de Pedro Páramo. Uns dizem que era louca. Outros, que
não. A verdade é que já falava sozinha quando estava viva.
— Deve
estar morta há muito tempo.
— Ui,
sim! Faz muito tempo. O que você ouviu ela dizer?
—
Alguma coisa sobre a mãe dela.
— Mas
se ela nem teve mãe...
— Pois
era disso que falava.
– ...
Ou, pelo menos, não trouxe a mãe quando veio para cá. Mas espera
aí. Agora lembro que ela nasceu aqui, e que quando estava meio
crescidinha desapareceram. E sim, lembro, sua mãe morreu tísica.
Era uma senhora muito estranha que sempre foi doente e que não
visitava ninguém.
— É
o que ela diz. Que ninguém foi ver a sua mãe quando morreu.
— Mas
de que tempos será que ela fala? Claro que ninguém apareceu na casa
da mãe, de medo de pegar tísica. Será que essa descarada não
lembra disso?
— Pois
falava disso.
—
Quando você tomar a ouvi-la me avisa,
que eu gostaria de saber o que ela diz.
— Está
ouvindo? Parece que ela vai dizer alguma coisa. Dá para ouvir um
murmúrio.
— Não,
não é ela. Isso vem de mais longe, lá daqueles lados. E é voz de
homem. O que acontece com esses mortos velhos é que quando a umidade
chega neles, começam a se remexer. E despertam.
“O
céu é grande. Deus esteve comigo naquela noite. Se não fosse isso,
quem sabe o que teria acontecido? Porque já era noite quando
revivi...”
— Está
ouvindo mais claro agora?
— Sim.
“...
Tinha sangue por tudo que é lado. E ao me levantar, chafurdei com
minhas mãos no sangue regado nas pedras. E era meu. Montões de
sangue. Mas eu não estava morto. Reparei. Soube que dom Pedro não
tinha intenção de me matar. Só de me dar um susto. Queria
averiguar se eu tinha estado em Vilmayo dois meses antes. No dia de
São Cristóvão. No casamento. Qual casamento? Que São Cristóvão?
Eu chafurdava no meu sangue e perguntava a ele: ‘Em qual casamento,
dom Pedro?’ Não, não, dom Pedro, eu não fui. Pode até ser que,
por acaso, eu tenha passado por lá. Mas foi coincidência... Ele não
teve intenção de me matar. Fiquei manco, desse jeito que vocês
veem, e sem o uso do braço. Mas não me matou. Dizem que desde então
fiquei com um olho torto, por causa do pavor. Mas a verdade é que
virei mais homem. O céu é grande. Não tem como duvidar disso.”
— Quem
será que foi?
— Como
vou saber... Um de tantos. Pedro Páramo causou tamanha mortandade
depois que mataram seu pai, que falam por aí que ele acabou com
quase todos os que estavam no casamento em que dom Lucas Páramo ia
ser padrinho. E isso que dom Lucas foi pego meio que sem querer,
porque parece que a coisa toda era contra o noivo. E como nunca se
soube de onde tinha saído a bala que acertou nele, Pedro Páramo
apagou todos. Isso foi lá no morro de Vilmayo, onde havia uns
ranchos dos que já não sobrou nem rastro... Olha só, agora, sim,
parece que é ela. Você, que tem ouvidos jovens, presta atenção. E
depois me conta o que ela disser.
— Não
dá para entender. Parece que nem fala, só se queixa.
— E
se queixa de quê?
— Pois
quem sabe?
— Deve
ser de alguma coisa. Ninguém se queixa de nada. Escuta direito.
— Pois
se queixa e pronto. Talvez Pedro Páramo tenha feito ela sofrer.
— Não
acredite nisso. Ele gostava dela. Quase que eu digo que ele não quis
nunca outra mulher como quis essa. É que já entregaram ela sofrida
e, vai ver, louca. Tanto gostou dela, que passou o resto de seus anos
jogado numa cadeira de assento de couro, olhando o caminho por onde
ela foi levada para o campo-santo. Perdeu o interesse por tudo.
Desalojou sua terra e mandou queimar os seus trastes e suas coisas.
Uns dizem que foi porque ele já estava cansado demais, outros porque
ficou desesperado; mas o fato é que pôs o pessoal para fora e
sentou-se na sua cadeira de couro, virado de cara para aquele
caminho.
“Desde
então a terra ficou baldia e arruinada. Dava pena ver a terra
enchendo-se de achaques de tanta praga que a invadiu, quando a
deixaram abandonada. De lá para cá, as pessoas se consumiram; os
homens debandaram à procura de outros ‘bebedouros’. Lembro os
dias em que Comala encheu-se de ‘adeuses’ e até nos parecia
coisa alegre ir se despedir dos que iam embora. E é que eles iam com
a intenção de voltar. Pediam para a gente tomar conta das suas
coisas e das famílias. Depois alguns mandavam buscar a família mas
não suas coisas, e depois parece que se esqueceram do povoado e de
nós, e até de suas coisas. Eu fiquei porque não tinha para aonde
ir. Outros ficaram esperando que Pedro Páramo morresse, pois pelo
que diziam ele tinha lhes prometido herdar seus bens, e com essa
esperança alguns ainda viveram. Mas se passaram anos e anos e ele
continuava vivo, sempre ali, feito um espantalho diante das terras da
Media Luna.
“E
quando já faltava pouco para ele morrer, aconteceram as tais guerras
dos ‘cristeiros’ e a tropa fez fieira, arrebanhando os poucos
homens que sobravam. Foi quando comecei a morrer de fome, e desde
então nunca mais tornei a me acasalar.
“E
tudo isso por causa das ideias de dom Pedro, por suas guerras da
alma. Tudo porque sua mulher morreu, a tal Susanita. Imagina só se
ele gostava dela ou não.
Juan
Rulfo, in Pedro Páramo
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