sábado, 9 de setembro de 2017

Uma voz de mulher

Foi você que disse tudo isso, Dorotea?
Quem, eu? Adormeci um pouco. Continuam assustando você?
Ouvi alguém falando. Uma voz de mulher. Achei que era você.
Voz de mulher? Achou que era eu? Deve ser a que fala sozinha. A da sepultura grande. Dona Susanita. Está enterrada aqui, ao nosso lado. A umidade deve ter chegado até ela, que está se revirando no meio do sono.
E quem é ela?
A última esposa de Pedro Páramo. Uns dizem que era louca. Outros, que não. A verdade é que já falava sozinha quando estava viva.
Deve estar morta há muito tempo.
Ui, sim! Faz muito tempo. O que você ouviu ela dizer?
Alguma coisa sobre a mãe dela.
Mas se ela nem teve mãe...
Pois era disso que falava.
... Ou, pelo menos, não trouxe a mãe quando veio para cá. Mas espera aí. Agora lembro que ela nasceu aqui, e que quando estava meio crescidinha desapareceram. E sim, lembro, sua mãe morreu tísica. Era uma senhora muito estranha que sempre foi doente e que não visitava ninguém.
É o que ela diz. Que ninguém foi ver a sua mãe quando morreu.
Mas de que tempos será que ela fala? Claro que ninguém apareceu na casa da mãe, de medo de pegar tísica. Será que essa descarada não lembra disso?
Pois falava disso.
Quando você tomar a ouvi-la me avisa, que eu gostaria de saber o que ela diz.
Está ouvindo? Parece que ela vai dizer alguma coisa. Dá para ouvir um murmúrio.
Não, não é ela. Isso vem de mais longe, lá daqueles lados. E é voz de homem. O que acontece com esses mortos velhos é que quando a umidade chega neles, começam a se remexer. E despertam.
O céu é grande. Deus esteve comigo naquela noite. Se não fosse isso, quem sabe o que teria acontecido? Porque já era noite quando revivi...”
Está ouvindo mais claro agora?
Sim.
... Tinha sangue por tudo que é lado. E ao me levantar, chafurdei com minhas mãos no sangue regado nas pedras. E era meu. Montões de sangue. Mas eu não estava morto. Reparei. Soube que dom Pedro não tinha intenção de me matar. Só de me dar um susto. Queria averiguar se eu tinha estado em Vilmayo dois meses antes. No dia de São Cristóvão. No casamento. Qual casamento? Que São Cristóvão? Eu chafurdava no meu sangue e perguntava a ele: ‘Em qual casamento, dom Pedro?’ Não, não, dom Pedro, eu não fui. Pode até ser que, por acaso, eu tenha passado por lá. Mas foi coincidência... Ele não teve intenção de me matar. Fiquei manco, desse jeito que vocês veem, e sem o uso do braço. Mas não me matou. Dizem que desde então fiquei com um olho torto, por causa do pavor. Mas a verdade é que virei mais homem. O céu é grande. Não tem como duvidar disso.”
Quem será que foi?
Como vou saber... Um de tantos. Pedro Páramo causou tamanha mortandade depois que mataram seu pai, que falam por aí que ele acabou com quase todos os que estavam no casamento em que dom Lucas Páramo ia ser padrinho. E isso que dom Lucas foi pego meio que sem querer, porque parece que a coisa toda era contra o noivo. E como nunca se soube de onde tinha saído a bala que acertou nele, Pedro Páramo apagou todos. Isso foi lá no morro de Vilmayo, onde havia uns ranchos dos que já não sobrou nem rastro... Olha só, agora, sim, parece que é ela. Você, que tem ouvidos jovens, presta atenção. E depois me conta o que ela disser.
Não dá para entender. Parece que nem fala, só se queixa.
E se queixa de quê?
Pois quem sabe?
Deve ser de alguma coisa. Ninguém se queixa de nada. Escuta direito.
Pois se queixa e pronto. Talvez Pedro Páramo tenha feito ela sofrer.
Não acredite nisso. Ele gostava dela. Quase que eu digo que ele não quis nunca outra mulher como quis essa. É que já entregaram ela sofrida e, vai ver, louca. Tanto gostou dela, que passou o resto de seus anos jogado numa cadeira de assento de couro, olhando o caminho por onde ela foi levada para o campo-santo. Perdeu o interesse por tudo. Desalojou sua terra e mandou queimar os seus trastes e suas coisas. Uns dizem que foi porque ele já estava cansado demais, outros porque ficou desesperado; mas o fato é que pôs o pessoal para fora e sentou-se na sua cadeira de couro, virado de cara para aquele caminho.
Desde então a terra ficou baldia e arruinada. Dava pena ver a terra enchendo-se de achaques de tanta praga que a invadiu, quando a deixaram abandonada. De lá para cá, as pessoas se consumiram; os homens debandaram à procura de outros ‘bebedouros’. Lembro os dias em que Comala encheu-se de ‘adeuses’ e até nos parecia coisa alegre ir se despedir dos que iam embora. E é que eles iam com a intenção de voltar. Pediam para a gente tomar conta das suas coisas e das famílias. Depois alguns mandavam buscar a família mas não suas coisas, e depois parece que se esqueceram do povoado e de nós, e até de suas coisas. Eu fiquei porque não tinha para aonde ir. Outros ficaram esperando que Pedro Páramo morresse, pois pelo que diziam ele tinha lhes prometido herdar seus bens, e com essa esperança alguns ainda viveram. Mas se passaram anos e anos e ele continuava vivo, sempre ali, feito um espantalho diante das terras da Media Luna.
E quando já faltava pouco para ele morrer, aconteceram as tais guerras dos ‘cristeiros’ e a tropa fez fieira, arrebanhando os poucos homens que sobravam. Foi quando comecei a morrer de fome, e desde então nunca mais tornei a me acasalar.
E tudo isso por causa das ideias de dom Pedro, por suas guerras da alma. Tudo porque sua mulher morreu, a tal Susanita. Imagina só se ele gostava dela ou não.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

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