quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Quando o telefone toca

Às seis e meia da tarde, depois de pensar por quase oito horas seguidas, de tomar sete xícaras de café e de fumar onze cigarros, o escritor finalmente teve uma ideia para a história.
A primeira frase saiu de uma vez só.
Ele teve apenas o trabalho de transcrever as palavras que já vieram prontas, de presente:

Georgia entrou no bar lotado decidida a tentar uma última vez.

Às vezes isso acontecia com ele, um momento de sorte, de iluminação ou de plágio.
Deve existir um assoprador de plantão para ajudar escritores sem ideias. Deus, quem sabe? Ou alguém contratado pelas editoras.
Ele sempre pensava isso quando era beneficiado pelo destino com palavras de graça.
Seja quem fosse o seu ajudante incógnito, emudeceu, e ele teve que continuar a escrever por conta própria. Afinal era um escritor, ora:

Procurou primeiro no balcão. Ele não estava lá. Começou a procurar mesa por mesa, desesperadamente, o coração descompassado e aflito nem sabia bater direito (os corações têm essa mania de fazer tudo errado quando a gente mais precisa deles).

Releu até aqui. Gostou. Já era um começo. Quando ia continuar, todo feliz, o telefone tocou. “Droga”, o escritor pensou, “aposto que lá vem problema”. Era o vizinho de baixo:
Você pode dar uma descidinha aqui pra verificar pessoalmente o vazamento?
O escritor deixou Georgia lá e saiu resmungando: “Vazamento a essa hora?”.
Ela ficou no bar lotado, com o coração descompassado e aflito, pensando, e agora?
Como é que continuava a história? Ela só sabia até ali. Seu nome era Georgia, tinha entrado no bar decidida a tentar uma última vez, procurou primeiro no balcão, ele não estava lá, começou a procurar mesa por mesa, desesperadamente, não sei que lá e tal e coisa.
E daqui pra frente? Daqui pra frente não sabia mais.
E dali pra trás? Georgia, então, deu uma ré no pensamento até onde conseguia alcançar, mas não chegou muito longe. Sua história já começava de quando entrou no bar pra cá.
Dali pra trás, sabe-se lá. Não tinha um antes. Era feliz? Infeliz? Como saber?
Coitada de Georgia, personagem de uma crônica que teve que parar de repente. Será que o seu passado existia por aí em alguma cabeça, papel, pasta, gaveta, lixo, perdido em algum depósito das histórias não contadas? Será que tinha futuro? E se o escritor demorasse pra voltar e ela tivesse que ficar ali naquele bar indefinidamente? Olha só o problema. As histórias paradas existem? Não? Pelo menos existiram enquanto foram uma possibilidade? E nada de o escritor chegar. O jeito era continuar sozinha a partir dali.
Já estava ficando até chato, ela, naquele bar lotado, pra cima e pra baixo, feito uma louca. Uma pessoa sem objetivo claro, sem lembranças, sem nada, fora a informação de que estava à procura de alguém. De quem, meu Deus?
Quem era esse tal “ele” que ela estava procurando?
Seria esse? Seria aquele? Quanta gente!
Se o escritor tivesse inventado um bar vazio ia dar menos trabalho.
Pelo menos ela sabia que “ele” não estava no balcão. Devia estar numa mesa, então. Em qual delas? O bar era muito grande, e o coração de Georgia batia “descompassado e aflito”; precisava desse detalhe irritante? Bem que ele podia ter escrito que ela estava calma, serena. Mas não. Inventou uma mulher nervosa, num bar lotado, havia inferno maior do que esse?
Havia. As pessoas não paravam de circular dentro do bar, de forma que “ele” podia muito bem ter saído da sua mesa pra ir ao balcão, ao salão ou ao banheiro. Como é que alguém (que não sabe quem é) pode encontrar alguém (que não sabe quem é) desse jeito?
Ela começou a perguntar, rapaz por rapaz: “é você?”.
Eles não sabiam responder.
Na hora que inventou um bar lotado, o escritor criou um monte de gente com o mesmo problema. Ninguém sabia quem era, nem o que estava fazendo, nem as moças, nem os garçons, nem o porteiro, nem aquele rapaz ali, sozinho naquela mesa...
Espera. Será que “ele” era aquele? Tão simpático. Bonito. Interessante. Tão sozinho.
Georgia sorriu pra ele. Ele sorriu pra ela e convidou: “Quer sentar?”.
Nesse momento o escritor voltou lá do vizinho. Droga de vazamento! Releu o que tinha escrito até ali. Essa história não estava com muita cara de que ia dar em alguma coisa, pensou.
Então deletou Georgia e o bar inteiro.
Adriana Falcão, in O doido da garrafa

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