Às
seis e meia da tarde, depois de pensar por quase oito horas seguidas,
de tomar sete xícaras de café e de fumar onze cigarros, o escritor
finalmente teve uma ideia para a história.
A
primeira frase saiu de uma vez só.
Ele
teve apenas o trabalho de transcrever as palavras que já vieram
prontas, de presente:
Georgia
entrou no bar lotado decidida a tentar uma última vez.
Às
vezes isso acontecia com ele, um momento de sorte, de iluminação ou
de plágio.
Deve
existir um assoprador de plantão para ajudar escritores sem ideias.
Deus, quem sabe? Ou alguém contratado pelas editoras.
Ele
sempre pensava isso quando era beneficiado pelo destino com palavras
de graça.
Seja
quem fosse o seu ajudante incógnito, emudeceu, e ele teve que
continuar a escrever por conta própria. Afinal era um escritor, ora:
Procurou
primeiro no balcão. Ele não estava lá. Começou a procurar mesa
por mesa, desesperadamente, o coração descompassado e aflito nem
sabia bater direito (os corações têm essa mania de fazer tudo
errado quando a gente mais precisa deles).
Releu
até aqui. Gostou. Já era um começo. Quando ia continuar, todo
feliz, o telefone tocou. “Droga”, o escritor pensou, “aposto
que lá vem problema”. Era o vizinho de baixo:
—
Você
pode dar uma descidinha aqui pra verificar pessoalmente o vazamento?
O
escritor deixou Georgia lá e saiu resmungando: “Vazamento a essa
hora?”.
Ela
ficou no bar lotado, com o coração descompassado e aflito,
pensando, e agora?
Como
é que continuava a história? Ela só sabia até ali. Seu nome era
Georgia, tinha entrado no bar decidida a tentar uma última vez,
procurou primeiro no balcão, ele não estava lá, começou a
procurar mesa por mesa, desesperadamente, não sei que lá e tal e
coisa.
E
daqui pra frente? Daqui pra frente não sabia mais.
E
dali pra trás? Georgia, então, deu uma ré no pensamento até onde
conseguia alcançar, mas não chegou muito longe. Sua história já
começava de quando entrou no bar pra cá.
Dali
pra trás, sabe-se lá. Não tinha um antes. Era feliz? Infeliz? Como
saber?
Coitada
de Georgia, personagem de uma crônica que teve que parar de repente.
Será que o seu passado existia por aí em alguma cabeça, papel,
pasta, gaveta, lixo, perdido em algum depósito das histórias não
contadas? Será que tinha futuro? E se o escritor demorasse pra
voltar e ela tivesse que ficar ali naquele bar indefinidamente? Olha
só o problema. As histórias paradas existem? Não? Pelo menos
existiram enquanto foram uma possibilidade? E nada de o escritor
chegar. O jeito era continuar sozinha a partir dali.
Já
estava ficando até chato, ela, naquele bar lotado, pra cima e pra
baixo, feito uma louca. Uma pessoa sem objetivo claro, sem
lembranças, sem nada, fora a informação de que estava à procura
de alguém. De quem, meu Deus?
Quem
era esse tal “ele” que ela estava procurando?
Seria
esse? Seria aquele? Quanta gente!
Se
o escritor tivesse inventado um bar vazio ia dar menos trabalho.
Pelo
menos ela sabia que “ele” não estava no balcão. Devia estar
numa mesa, então. Em qual delas? O bar era muito grande, e o coração
de Georgia batia “descompassado e aflito”; precisava desse
detalhe irritante? Bem que ele podia ter escrito que ela estava
calma, serena. Mas não. Inventou uma mulher nervosa, num bar lotado,
havia inferno maior do que esse?
Havia.
As pessoas não paravam de circular dentro do bar, de forma que “ele”
podia muito bem ter saído da sua mesa pra ir ao balcão, ao salão
ou ao banheiro. Como é que alguém (que não sabe quem é) pode
encontrar alguém (que não sabe quem é) desse jeito?
Ela
começou a perguntar, rapaz por rapaz: “é você?”.
Eles
não sabiam responder.
Na
hora que inventou um bar lotado, o escritor criou um monte de gente
com o mesmo problema. Ninguém sabia quem era, nem o que estava
fazendo, nem as moças, nem os garçons, nem o porteiro, nem aquele
rapaz ali, sozinho naquela mesa...
Espera.
Será que “ele” era aquele? Tão simpático. Bonito.
Interessante. Tão sozinho.
Georgia
sorriu pra ele. Ele sorriu pra ela e convidou: “Quer sentar?”.
Nesse
momento o escritor voltou lá do vizinho. Droga de vazamento! Releu o
que tinha escrito até ali. Essa história não estava com muita cara
de que ia dar em alguma coisa, pensou.
Então
deletou Georgia e o bar inteiro.
Adriana
Falcão,
in O
doido da garrafa
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