sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Filhos da pátria

Lembro que no primeiro ano da invasão do Iraque, um canal de TV transmitiu um programa em que um norte-americano, negro, de dedo em riste para a câmera, gritava que Bush havia lhe tirado seu bem mais precioso: o filho.
Ao ver essa cena, recordei um conto de William Faulkner: “Dois soldados”.
É uma história triste e comovente, narrada por um menino de nove anos. Ele e Pete — seu irmão mais velho — moram com os pais em Frenchman’s Bend, um povoado nos confins do sul dos Estados Unidos. Ambos trabalham com o pai na pequena lavoura da família. Durante a noite, os dois irmãos acompanham furtivamente o noticiário transmitido pelo rádio de um vizinho, o velho Killegrew. Pete ouve a notícia do bombardeio de Pearl Harbor pelo Exército japonês em dezembro de 1941. Por algum tempo, eles ouvem notícias da guerra, até que um dia Pete diz ao irmão:

Tenho que ir.”
Ir para onde?”, pergunta o menino.
Para essa guerra”, responde Pete.
Antes de levarmos a lenha pra casa?”
Ao diabo a lenha”, diz Pete. “Não vou permitir que ninguém trate os Estados Unidos desse modo.”
Sim”, diz o menino. “Com lenha ou sem lenha parece que temos de ir.”

Em Memphis, Pete alista-se no Exército e em seguida viaja para a Ásia. Nesse relato de Faulkner, o que comove e faz pensar não é a decisão de Pete, cujo dever de defender a pátria é menos importante que a reação de seus familiares. Essa reação é o contrapeso ao arroubo patriótico de Pete. O caçula foge de casa, vai a pé para Jefferson, depois pega um ônibus até Memphis. O encontro dos irmãos — dois soldados — antes da partida sem volta de Pete é um dos momentos mais significativos do conto. Para o mais velho, o sentimento do dever e da honra prevalece sobre a separação da família. Para o caçula, o patriotismo é uma noção vaga, mas a batalha contra os japoneses lhe serve de pretexto para permanecer ao lado do irmão. Quando eles se separam em Memphis, o caçula regressa a Frenchman’s Bend; ao chegar à sua casa ele percebe ou sente que nunca mais verá o irmão e chora. O desfecho do conto é o choro convulsivo da criança.
Mas há outra passagem relevante, que remete à cena a que assisti na TV sobre um americano que perdeu o filho na invasão do Iraque. É uma página que diz respeito à estupidez da guerra, de todas as guerras. Uma única vez, os pais de Pete tentam persuadi-lo a não ir lutar na Ásia.
Ir para a guerra?”, pergunta o pai. “Por quê? Acho que isso não serve para nada. Não tens idade para o recrutamento, e não estão invadindo o país.”
Os pais de Pete mencionam um parente que participou na França da Primeira Guerra Mundial; o próprio pai alistou-se no Exército e passou nove meses em Memphis, à espera de uma convocação que, afinal, não aconteceu. Mas a mãe de Pete foi mais enfática, contrariando o senso comum do patriotismo norte-americano como algo sagrado. A mãe diz, chorando:
Se pudesse, eu mesma iria no lugar dele. Não quero salvar o país.”
Há várias formas de patriotismo. O tipo mais vulgar é fanático, ufanista, não raramente irmanado a uma religião, e cego e surdo à dor dos outros. Mas há também um patriotismo mais sofisticado e profundo, muito menos autorreferente, capaz de dialogar com outras culturas e superar limites estreitos de lealdade e honra. Em todo caso, nenhum patriotismo deveria ser mais forte do que o amor incondicional por um filho.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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