domingo, 24 de setembro de 2017

Cavaleiros e escudeiros

O primeiro imediato do Pequod era Starbuck, natural de Nantucket e Quacre de origem. Era um homem alto e sério e, embora tivesse nascido numa costa glacial, parecia adaptar-se bem às latitudes quentes, sendo sua carne dura como um biscoito duas vezes assado. Levado para as Índias, seu sangue cheio de energia não se estragaria como ale engarrafada. Deve ter nascido em plena época de seca e escassez de comida, ou num daqueles dias de jejum pelos quais sua região era conhecida. Vira apenas cerca de trinta verões áridos; esses verões tinham dissecado tudo o que havia de supérfluo em seu corpo. Mas sua magreza, por assim dizer, não parecia indício de ansiedades e inquietações desgastantes, nem sinal de qualquer ruína física. Era simplesmente uma condensação do homem. Não havia nada de doentio nele; muito pelo contrário.
A pele aderente ao corpo lhe caía bem; e envolvido nela com justeza, e embalsamado com saúde e força interiores, como um egípcio ressuscitado, esse Starbuck parecia preparado para durar por muitos anos, e sempre, como agora; pois, com neve Polar ou sol tórrido, como um cronômetro, sua vitalidade interior tinha a garantia de se dar bem em todos os climas. Olhando em seus olhos, talvez você encontrasse as imagens remanescentes dos milhares de perigos que ele enfrentara com calma durante sua vida. Um homem sério e inabalável, cuja vida era, em sua maior parte, uma pantomima de ação, e não um capítulo de palavras dóceis. Malgrado toda a sobriedade e coragem, havia nele certas qualidades que às vezes afetavam e em alguns casos pareciam contrabalançar todo o resto. Consciencioso ao extremo para um homem do mar e dotado de uma reverência natural e profunda, a feroz solidão marinha de sua vida o predispusera à superstição; mas a um tipo de superstição que em certos indivíduos parece surgir, de algum modo, mais da inteligência do que da ignorância. Augúrios externos e pressentimentos internos lhe eram algo próprio. Se por vezes essas coisas vergavam o bloco de ferro de sua alma, muito mais a distante recordação doméstica de sua jovem esposa no Cabo e do filho tendia a afastá-lo da rudeza original de sua natureza, e a abri-lo ainda mais a essas influências latentes que, em certos homens de coração honesto, temperam a manifestação de uma audácia temerária, em outros tantas vezes evidente nas mais perigosas situações da pesca. “Não quero no meu bote”, dizia Starbuck, “homem que não tenha medo de baleia.” Com isso parecia querer dizer não apenas que a coragem mais útil e confiável é a que surge de uma avaliação justa do perigo iminente, mas também que um homem totalmente destemido é um sujeito muito mais perigoso do que um homem covarde.
Sim, sim”, disse Stubb, o segundo imediato, “Starbuck é um dos homens mais prudentes que se encontra nesse tipo de pesca.” Mas logo veremos o que a palavra “prudente” significa, quando usada por um homem como Stubb, ou por qualquer outro caçador de baleias.
Starbuck não era nenhum cruzado em busca de perigos; para ele a coragem não era um sentimento; apenas uma coisa simplesmente útil e sempre disponível em todas as ocasiões mortalmente práticas da vida. Além disso, talvez pensasse que na atividade da pesca de baleias a coragem fosse um dos grandes equipamentos indispensáveis do navio, tal como a carne e o pão, e que não deveria ser desperdiçada. Por isso não lhe agradava descer aos botes para pescar depois do pôr-do-sol; nem persistir em lutar contra um peixe que persistisse em lutar contra ele. Porque – pensava Starbuck – estou neste oceano cheio de riscos para ganhar a vida matando baleias e não para ser morto por uma delas; e centenas de homens haviam morrido dessa forma, Starbuck sabia muito bem. Qual tinha sido o destino de seu próprio pai? Onde, no abismo sem fundo, poderia encontrar os membros arrancados de seu irmão?
Com memórias como essas e, além disso, propenso a certas superstições, como disse antes; a coragem deste Starbuck, sempre pronta a se manifestar, deve ter sido extrema. Mas não seria natural que um homem assim talhado, com lembranças e experiências tão terríveis – repito, não seria natural que esses fatos deixassem de gerar nele um elemento latente, que em circunstâncias favoráveis poderia se libertar de seu confinamento e consumir toda a sua coragem. Por mais corajoso que fosse, sua coragem era de um tipo visível principalmente em homens intrépidos, que, apesar de permanecerem firmes em seus conflitos com os mares, ou ventos, ou baleias, ou quaisquer dos horrores irracionais comuns do mundo, não suportam outros terrores mais terríveis, uma vez que mais espirituais, como as ameaças do semblante carregado de um homem enraivecido e poderoso.
Mas viesse a narrativa seguinte a revelar, em qualquer instância, o completo aviltamento da fortaleza do pobre Starbuck, eu mal teria coragem de escrevê-la; pois a coisa mais dolorosa, para não dizer repugnante, é expor a queda do valor de uma alma. Os homens podem parecer detestáveis em suas sociedades comerciais ou países; velhacos, parvos e assassinos podem existir entre eles; homens podem ter rostos maus e mesquinhos; mas o homem, no ideal, é tão nobre e tão esplêndido, é criatura tão grandiosa e reluzente, que diante de qualquer ignomínia que venha a maculá-lo todos os seus semelhantes acorrerão para cobri-lo com seus mantos mais valiosos. A imaculada virilidade que sentimos dentro de nós, profundamente em nós, que permanece intacta, mesmo quando toda a personalidade exterior parece nos haver abandonado; ela sangra com o sofrimento mais agudo perante o espetáculo da ruína de um homem de valor. Nem a própria piedade pode, diante da visão de tamanha vergonha, sufocar completamente seus protestos contra as estrelas coniventes. Mas essa augusta dignidade de que falo não é a dignidade dos reis e dos mantos, mas a dignidade abundante que não se cobre com os trajes de gala. Tu hás de encontrá-la no braço luzidio que maneja a picareta ou bate um prego; aquela dignidade democrática que sobre todos e sem termo se irradia de Deus; Dele! O grande Deus absoluto! Centro e circunferência de toda democracia! Sua onipresença, nossa igualdade divina!
Se, portanto, aos mais vis marujos, e aos desertores e náufragos, eu atribuir qualidades nobres, ainda que obscuras; envolvê-los com encantos trágicos; se até o mais triste, talvez o mais degradante deles todos, erguer-se aos mais altos píncaros; se eu tocar o braço desse trabalhador com uma luz etérea; se eu estender um arco-íris sobre seu desastroso pôr-do-sol; então protege-me contra todas as críticas mortais, Tu, justo Espírito da Igualdade, que estendeu o manto real da humanidade sobre toda a minha espécie! Protege-me, grande Deus democrático! Tu, que não recusaste ao criminoso condenado Bunyan a pálida pérola poética; Tu, que cobriste com folhas de ouro fino o braço despedaçado e empobrecido do velho Cervantes; Tu, que levantaste Andrew Jackson dos seixos, o colocaste num cavalo de batalha e o fizeste elevar-se mais alto do que um trono! Tu, que, em todas as passagens solenes pela terra, sempre elegeste os Teus campeões seletos entre o povo majestático; protege-me, ó, Deus!
Herman Melville, in Moby Dick

Nenhum comentário:

Postar um comentário