segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Angela Carter


Na última vez em que visitei Angela Carter, poucas semanas antes de sua morte, ela insistiu em se aprontar para o chá, embora estivesse sofrendo dores consideráveis. Sentou-se, de olhos brilhantes, ereta, a cabeça inclinada como a de um papagaio, os lábios satiricamente apertados e partiu para a séria atividade da hora do chá — fornecer e receber as últimas sujeiras —, cortante, boca suja, apaixonada. Era assim que ela era: provocantemente desbocada — uma vez, quando terminei um relacionamento que ela não aprovava, telefonou-me para dizer: “Bom. Agora você vai poder me visitar muito mais” — e ao mesmo tempo cortês a ponto de enfrentar um sofrimento mortal para ser gentil em um formal chá da tarde.
A morte deixava Angela genuinamente furiosa, mas tinha um consolo. Ela havia feito um “imenso” seguro de vida pouco antes de o câncer se manifestar. A perspectiva de a seguradora ser obrigada, depois de receber tão poucos pagamentos, a entregar uma fortuna aos “seus meninos” (o marido, Mark, e o filho, Alexander) a divertia muito e inspirou uma maligna ária de comédia negra diante da qual era impossível não rir.
Ela planejou cuidadosamente seu funeral. As instruções para mim eram ler o poema de Marvell “Uma gota de orvalho”. Isso foi uma surpresa. A Angela que eu conhecia havia sido sempre a mulher mais escatologicamente anti-religiosa, alegremente sem Deus; no entanto, queria a meditação de Marvell sobre a alma imortal — “aquela gota, aquele raio / da clara Fonte do Eterno Dia” — pronunciada diante de seu corpo morto. Seria uma última piada surrealista, do tipo “graças a Deus morri ateu”, ou uma reverência à alta linguagem simbólica do metafísico Marvell, da parte de uma escritora cuja linguagem era também de alto tom e repleta de símbolos? Note-se que no poema de Marvell não aparece nenhuma divindade, a não ser “o Todo-Poderoso Sol”. Talvez Angela, sempre uma doadora de luz, estivesse nos pedindo, no final, para imaginá-la se dissolvendo nas “glórias” daquela luz maior: o artista simplesmente se tornando parte da arte.
Ela era uma escritora individual demais, feroz demais, para se dissolver assim tão fácil: alternadamente formal e insolente, exótica e vulgar, refinada e grossa, preciosa e vagabunda, fabulista e socialista, púrpura e preta. Seus romances não são iguais aos de ninguém, desde a coloratura transexual de The passion of New Eve [A paixão de Nova Eva] à fila de coristas de music-hall de Wise children [Crianças espertas]; mas o melhor dela, em minha opinião, são os contos. Às vezes, na dimensão do romance, a voz característica de Carter, aquelas enfumaçadas cadências de comedora de ópio interrompidas por dissonâncias ásperas ou cômicas, aquela mistura da opulência de opala-e-seixo-do-Reno com disparates, pode ser cansativa. Nos contos, ela é capaz de deslumbrar e arrebatar, e terminar enquanto está ganhando.
Carter chegou quase inteiramente formada; um de seus primeiros contos, “A very, very great lady and her son at home” [Uma grande, grande dama e seu filho em casa], já está repleto de temas carterianos. Ali estão seu amor pelo gótico, a linguagem opulenta e a alta cultura; mas também pelos fedores baixos — pétalas de rosa caindo que soam como peidos de pombos, e um pai que tem cheiro de esterco de cavalo, e intestinos que são “grandes niveladores”. Aí está o eu enquanto performance: perfumado, decadente, langoroso, erótico, perverso; muito parecido com a mulher alada, Fevvers, heroína de seu penúltimo romance, Nights at the circus [Noites no circo].
Outro conto do início, “A victorian fable” [Uma fábula vitoriana], anuncia seu vício por todos os arcanos da linguagem. Esse texto extraordinário, parte “Jabberwocky”, parte Pale fire [Fogo pálido], exuma o passado como nunca antes, ao exumar palavras mortas: “In every snickert and ginnel, bone-grubbers, rufflers, shivering-jemmies, anglers, clapperdogeons, peterers, sneeze-lurkers and Whip Jack with their morts, out of the picaroon, fox and flimp and ogle” [Em todo beco e viela, falsos mendigos, desordeiros, arrombadores, assaltantes, mendigos natos, pescadores, vagabundos, falsos marinheiros com suas mulheres, vindos da pirataria, espreitam, batem carteiras, namoram].
Saibam do seguinte, dizem essas primeiras histórias: esta escritora não é arroz com feijão; ela é um foguete, uma roda de fogos de artifício. Sua primeira coletânea intitula-se Fireworks [Fogos de artifício].
Salman Rushdie, in Cruze esta linha

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