quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Terrae vis

Amigo meu, homem viajado e sensível, assegura-me que — se o levassem, de tapados ouvidos e olhos, a uma das muitas cidades deste mundo dele conhecidas — ainda assim a identificaria, e imediatamente. Acho bem possível. Digo mesmo que também me sinto capaz de às vezes não errar, em o caso. Não que prometa reconhecer todos os lugares onde já tenha estado; mas, pelo menos quanto a uns oito ou sete, posso quase garantir. Aliás, já devem ter escrito sobre o assunto. Tudo está nos livros. Cícero, por exemplo, no De Divinatione, refere que era “uma força emanada da terra” o que animava a Pitonisa, e acresce: “Não vemos que são várias as espécies de terras? Delas há que são mortíferas, como Ampsanctus, no país dos Hirpinos, e Plutônia, na Ásia, as quais eu mesmo vi. Há terrenos pestilentos, e há os salubres; alguns engendram homens de espírito agudo, outros produzem seres estúpidos. Esse é o efeito dos diferentes climas, mas também da disparidade dos eflúvios terrestres.”
É isto: irradiações telúricas — aspirationes terrarum. Sei que eu e o supradito amigo, para a enunciada façanha, dispensaremos outras sensações: as dadas do ar, do tempo, do magnetismo planetário, do espectro solar, ou — ódicas, fisioelétricas e prânicas — das propagações dos objetos e dos humanos entes: enfim, do mais que, mana à parte, ajuda a compor esse buquê difuso, aura, “atmosfera”. Bastam-nos as invisíveis forças que sobem do chão, que estão sempre vindo de baixo.
E essas talvez expliquem muita coisa. Em duas ocasiões, voando sobre os Andes, a uma altura entre 4 e 5 mil metros, não deixei de interceptar a torva soturna emissão daquelas lombadas cinéreas, desertas e imponentes. Juro que não se tratava de sugestão visual, mas de uma energia invariável, penetrante e direta, paralisadora de qualquer alegria. Por isso, não me espantou ouvir, tempos depois, este slogan repetidíssimo: “En la cárcel de los Andes...” E, do que sabia, mais me certifiquei, quando vim a ler nas Meditações Sul-Americanas de Keyserling: “Nas alturas das cordilheiras, cujas jazidas minerais exalam ainda hoje emanações como as que antigamente metamorfosearam faunas e floras, tive consciência da minha própria mineralidade.”
Demais, foi Keyserling mesmo quem escreveu, da Cidade Maravilhosa: “O ambiente do Rio de Janeiro é um puro afrodisíaco...” Creio verdade. Menos afrodisíaco, contudo, que, digamos, que o da terráquea Poços de Caldas — seguramente um dos lugares brasileiros mais abençoados pela risonha filha de Júpiter. E note-se que, contra quaisquer aparências, todo o chão da América, de Norte a Sul, funciona, a rigor, como anafrodisíaco, segundo os entendidos e as observações menos superficiais, atuais e históricas.
Mas, por falar em matéria de solo base própria para o amor, consta que nenhum melhor, e mais notório, que o de Paris, o de toda a Ile-de-France. — “Ici chez nous, vous le savez, l’amour c’est endémique...” — declarava-me uma estudante de medicina, funcionária do Musée de l’Homme. Todo o mundo sabe disso. Ali o amor dá, mesmo não se plantando. E, que é do chão, é. Se algum dia, o que Deus não deixa, destruíssem a cidade, até à qualquer pedra, depressa os amorgostosos de toda a parte viriam reconstruí-la, por mundial erótica necessidade.
Outras cidades há com menos grato fundamento. Diz-se, e diz-se muito, que três delas, na Europa, são essencialmente, terrestremente, deprimentes, tristes, tristifadonhas: Lião, Liverpool e Magdeburgo. Liverpool não conheço, mas toda a gente confirma que ela é aquilo mesmo: chega dá spleen até em seus filhos. Lião — se bem seja terra de mulheres bonitas e comidas gostosas — é, e os próprios lioneses não o negam, tristonha realmente, sem cura. Em Magdeburgo passei uma noite, e noite pesadíssima, mas era Sexta-Feira da Paixão, e aquela em que a Albânia foi invadida por Mussolini; seu tom lembrou-me o de Belo Horizonte — a qual, não obstante o clima ótimo, há de ser sempre propensa à melancolia e ao tédio, como em geral os lugares férreos, assim como são simpáticos e alegres os calcários: Corumbá, Paris mesma, Cordisburgo.
Niterói, alguém já me observou que sua superfície incita aos crimes. Discordo. Niterói é boa. De Chicago, ouvi outro tanto, e afirmam que sua gente se mostra a mais rude e egoísta dos Estados Unidos. Pode ser, ignoro mas, no caso, não se saberá se a celerada influência é bem terrânea, ou se se origina dos mil miasmas astrais, elementais ou larvas, que se evolam do sangue de tantos matadouros.
Em favor da tese, citem-se também Siena e Florença, ambas toscanas, ex-etruscas, e tão vizinhas, mas discrepadas, dissimilíssimas — uma realista, positiva, e a outra mística — conforme em tudo se ostentam, a principiar pelas artes respectivas.
Caso indubitável é o de Weimar: de seu subsolo, sente-se logo, vêm ondas de harmonia e de inspiração espiritual. Goethe o sabia, sabia-o Schiller. E também os que a escolheram para sítio de elaboração da Constituição do IIº Reich. Weimar é a Barbacena alemã, se não europeia. Intelectualizante e amena. Apenas — isto sim — que Barbacena, a Weimar nossa, talvez outrora excitasse um pouquinho mais, no que toque à política.
Outros e vivos exemplos haveria a citar, muitíssimos a estudar, pois a ciência é nova, anda ainda empírica. Mas séria. Sua importância é fundamental, obviamente. Não é à toa que os hindus de alta casta, quando de sua Índia se ausentavam, deviam mandar preparar calçados especiais, com um pouco da poeira do país entre duas solas.
Até, na minha Minas, quando o capiau faz para si a casinha, terra-a-terra, elege como sítio o batido limpo dos malhadores, ali onde — ele diz — “nada de ruim nem maldito governa de se aparecer”. De gente do Rio Grande do Sul, pastoril também, já ouvi assim isto. E que é que de ruim ou maldito gaúcho e mineiro receiam irrompa, que não nos pontos que o gado sábia-instintivamente escolhe para sua ruminada e dormida?
Afinal, hoje em dia está mais ou menos provado que tudo irradia. Como não irradiará então o chão, com sua imensa massa, misturada de elementos? Irradia, pois, conforme o que conforme. Tenhamo-lo.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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