quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Prólogo para Pergunte ao Pó

Aqueles sim que eram bons dias. Pergunte ao pó na estrada, pergunte às teias de aranha em meu quarto no St. Paul, vá até os camundongos que saem da quina do quarto, ah, camundonguinhos tão amigos, eu os tinha como meus bichinhos de estimação, até conversava com eles. “Olá, camundongo, como vai você esta noite, onde estão seus amiguinhos?” Claro, amigo de homem e besta também, alimentando os camundongos para torná-los meus amigos, um grande homem, uma alma generosa, leitor de Thoreau e Emerson, grande escritor em ascensão que precisava ser tolerante, espalhando migalhas para os camundongos comerem à noite, com as luzes do St. Paul piscando, e eu os observava correndo para lá e para cá, até que tinha de terminar com aquilo, eles ficavam afetuosos demais, subiam na minha cama e sentavam-se ao pé dela, éramos grandes amigos, mas, que diabo, eles se multiplicavam como chineses e o quarto era pequeno demais.
Falo como um lunático? Então me deem a insânia, me deem aqueles dias de volta. Deem-me o caprichoso romance de alguém que se compadecia da humanidade, aquela grande pessoa Bandini, autor de saídas magníficas, a piedade de tudo aquilo, a cidade absurda ao meu redor, bem-afortunada mãe adotiva de meu gênio. E subindo Angel’s Flight, duzentos degraus até Bunker Hill no meio da cidade, degraus consagrados, Senhor, Bandini pisava neles a caminho da imortalidade! Um dia, meu povo, vocês que só dizem sim, estes degraus ressoarão a minha memória e ali adiante naquele muro alto haverá uma placa de ouro, e sobre ela um baixo-relevo — a imagem do meu rosto. Estou sozinho agora? Bah! Minha solidão dá frutos e haverá uma Los Angeles do amanhã para lembrar que uma Voz subiu estas escadas e que Benny, o Agiota lá da esquina de Third e Hill vai chorar de alegria ao contar a seus netos que certa vez ele falou com um homem da eternidade. E daí até o meu quarto, para ter uma conversa comigo mesmo ao espelho. Ou talvez praticar um pouco para os dias da minha fama, colocar o espelho segundo um ângulo, ver como eu fico sentado à máquina de escrever, o grande homem trabalhando, respondendo às perguntas da imprensa, piscando pacientemente enquanto os flashes explodem. “Senhores, senhores! Por favor! Meus olhos, senhores — afinal de contas, eu também tenho o meu trabalho, os senhores sabem.” Risadas dos cavalheiros da imprensa. “Jesus, aquele sujeito, Bandini, um sujeito muito bacana, a fama não o estragou. Como um de nós, jornalistas comuns — um sujeito realmente bacana.”
Perguntem às recepções empoeiradas, perguntem ao saguão empoeirado, perguntem às pessoas empoeiradas no empoeirado saguão do St. Paul, às pessoas cansadas e empoeiradas, velhas, em vias de virar pó, vão morrer aqui, aos velhos e velhas, a poeira de Indiana e Ohio, de Illinois e Iowa, no seu sangue, destinados à poeira e à morte numa terra poeirenta sem raízes. Seis anos atrás e tantos já viraram pó, mas ainda existem alguns que se lembram do grande escritor, nenhuma poeira em sua boca, grande escritor mentiroso falando sobre grandes contos em The Saturday Evening Post e provando aquilo com uma história numa revista verde. Grande escritor, frequentador de livrarias poeirentas, pegando revistas empoeiradas e soprando o pó da sua querida história, comprando-as, com sua história, para que não se transformassem em pó. Sim, pergunte ao pó na estrada.
Vejam só, o grande escritor escrevendo cartas para casa, para a mamãe, grande escritor achando a vida dura, mas, veja, mamãe, tenho uma história saindo em The Atlantic, no Pacífico, por isso me mande cinco dólares, mamãe, me mande cinco dólares. E assim com cinco dólares, com dez dólares, o grande escritor com a revista verde numa boate cara falando com uma loura empoada e contando à grande loura sobre um dia mais glorioso. Tinha ela lido “Carissima Mia”, escrito por Arturo Bandini? Não, então que pena. E lera “Mea Culpa”, de Arturo Bandini? Sim, havia lido. Estranho, porque nunca fora escrita. Mas cinco dólares e dez dólares, saídos da poeira do Colorado, para ajudar o filhinho da mamãe, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.
Um livro repleto de pessoas, pessoas selvagens e poeirentas. A Los Angeles real, Bunker Hill, aquela parte da cidade abaixo de Figueroa, e Arturo Bandini sonhando com grandes dias. As pessoas que cruzaram seu caminho: Marcus, o vendedor de vinho, que me deu um emprego de ajudante de garçom porque achava que eu escrevia seriados para o SatEvePost. A sra. Adolphe Lang, com seus seios gordos e rosados, que oferecia a mim porque ela era a mãe de Deus e eu deveria compartilhar do leite da vida. David Myers, o comunista na esquina de Third e Hill, com sua perna aleijada, na qual guardava os cigarros de maconha que vendia. As velhas senhoras que eram as Eleitas de Deus e tinham de fazer sacrifícios com o Sangue do Cordeiro, mas não tinham nenhum cordeiro, por isso mataram um belo gato siamês. O negro gordo que levou Camilla e eu por um beco longo e sinistro até a Central Avenue e, subindo umas escadas caindo aos pedaços até um quarto num hotel deserto onde homens e mulheres jaziam como mortos, e o negro gordo os jogou para fora da cama, cortando o colchão e nos vendendo maconha tirada da fenda. Depois, em meu quarto, nós fumamos a maconha. Um cigarro, nenhum efeito. Dois. O quarto escurece. O corpo de Arturo levita. Ele se alça do chão, dois centímetros, cinco. Subindo, subindo e, oh, mundo absurdo, absurda Camilla, e Arturo ria e ria, mas não Camilla, sua boca amaciando, saliva branca como fios de seda agarrada a sua boca atrevida, abrindo-se ternamente para dizer seu nome, Arturo, Arturo. Sim e amém. Grandiosidade. Jesus, que romance! As duas lésbicas tocando piano no Embassy, tocando valsas de Strauss para Camilla enquanto Arturo fica furioso e cospe cerveja sobre o piano e nos cabelos da violinista. Os pintores bêbados no estúdio do andar acima, os tristes pintores, os pintores sem esperança, escola de S. McDonald Wright, último vestígio de um movimento de pintura a unir Leste e Oeste. As centenas de clubes noturnos sórdidos de Lower Fifth Street, apinhados de belas mulheres, garotas escrevendo para suas casas em Iowa e Indiana que estavam brilhando na grande cidade, céus, elas não estavam brilhando, elas estavam fodendo qualquer um e qualquer coisa, filipinos, japoneses e negros num lugar saturado de beldades. Ah, aqueles clubes noturnos, onde aprendi a divagar e a vagabundear, às vezes com dinheiro de outro conto vendido, às vezes quebrado, frequentemente pedindo dinheiro emprestado a garotas.
A caixa de esmolas na igreja do velho Plaza, da qual roubei sessenta centavos, porque estava pobre, não estava? O salão de danças filipino onde a polícia deu uma batida em busca de drogas, os tiras entrando, as luzes apagando, e os tiras gritando e lutando loucamente na escuridão e os calmos filipinos esgrimindo navalhas afiadas com a velocidade de metralhadoras e cortando em iscas os rostos dos policiais.
John Fante, in A grande fome: Contos (1932-1959)

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