quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Pegadas no rio, sombras no tempo (trecho)

Na berma da floresta, Zero Madzero perfilou-se militarmente, bateu três vezes com os pés no chão e, num gesto ríspido, projetou a mão de encontro à cabeça. Ficou assim imóvel, mais rígido que pau de cimbirre, como se esperasse uma voz de comando. Foi a mulher que o descomandou:
Que se passa, marido, mordeu-lhe algum bicho?
Não vê que estou a fazer kukwenga?
Fazer o quê?
Faço continência.
Estava saudando os sepultados, os que o antecederam. Ele era um Chikunda, descendente de soldados e caçadores. Os Achikunda cumprimentavam-se assim, de forma marcial, para se distinguirem dos outros povos, que eles tinham por efeminados por não caçarem nem guerrearem.
Cumpridas as saudações, Zero Madzero retirou do bolso uma porção de farinha que espalhou junto a um tronco de embondeiro. Pediu a Mwadia que se ajoelhasse junto com ele, fechou os olhos, bateu as mãos em concha e falou em si-nhungwé:
Peço-vos, meus antepassados, que me concedam autorização para entrar nesta floresta. Peço mais ainda que autorizem Mwadia, minha esposa, a me acompanhar. Sendo mulher ela está interdita de entrar no bosque. Mas o caso é demasiado imperativo. Agora, irei dormir na margem da floresta, deitado sobre o último caminho. Amanhã regressarei para confirmar se esta farinha foi deixada intacta como um sinal da vossa permissão.”
Terminada a prece, Zero Madzero se afastou para um recanto escuro e se alheou da esposa. Adormeceu, enrolado sobre si mesmo. Mwadia passou a noite em claro. De que valia dormir se ela não adormecia os sonhos?
Para se distrair da insônia ela, primeiro, pensou rezar. Todos rezam para pedir, ela rezaria para dar. Mas nenhuma palavra lhe ocorreu. Depois, ainda cantarolou num murmúrio de voz, como um riacho na primeira chuva. Mas de que servia cantar se a sua alma acabara ensurdecendo? Convicta de que a sua morada não podia ser outra senão o silêncio, Mwadia ergueu-se e pendurou a capulana num ramo. O ondear do pano a embalou e ela, vencida pelo cansaço, entregou-se ao sono. Mas foi escuro de pouca dura, pois logo o esposo a sacudiu:
A farinha está onde a deixei, vamos entrar na floresta!
O dia estreava e o orvalho brilhava sobre o pêlo do burro como se o bicho fosse coisa plantada, continuação de capins e seus perfumes. Seguiram em direção ao rio, passo cauteloso, olhar atento, até que começaram a chapinhar no chão saturado de água. O jumento Mbongolo se apressou a beber, enquanto o pastor se abrigava na sombra de uma frondosa mbawa. Contemplando a correnteza, Mwadia sentiu-se tomada por um irreconhecível impulso que a fez entrar na água. A coberto do rio, foi-se libertando das vestes. Lançou-as para a margem, peça por peça, perante o olhar aterrado do marido. O convite dela o fazia estremecer:
Vá, Madzero, se atire. Venha para a água!
A mulher enlouquecera? Ali, na floresta dos antepassados, onde as mulheres eram proibidas, ela se estava fazendo maior que o seu tamanho? Mwadia ainda esperou, mas depois acabou saindo da água. Não emergiu de corpo inteiro. Foi progredindo de gatas, como se o pudor a impedisse de se exibir toda despida. O que ela fez, de seguida, foi rolar-se na areia branca da margem.
Você está maluca, Mwadia?! Vista-se, mulher!
Estou vestida, marido. Estou vestida com a própria terra.
Mwadia Malunga fez uma concha das mãos e recolheu água do rio. Depois, foi derramando uns pingos sobre a pele. Assim, a sua nudez se revelava, gota a gota, fresta a fresta. A terra a vestia, a água a despia. Zero Madzero agitou os braços, em desespero, e desabafou:
Não posso ver isto. Você vai ser castigada sozinha!
O homem virou costas e desandou pelo mato. Mwadia sorriu, triste. Ela fora educada em cidade, na missão católica do Zimbabwe, perdera alguns dos temores que mandavam em Zero. Recordou-se do tempo em que ainda namorava, o marido respondia caloroso aos seus apelos. Ela se despia e se deitava de lado na cama. O marido demorava-se na contemplação do seu corpo:
Você está em fase de nua cheia, dizia ele, voz atabalhoada pelo fervilhar da paixão.
Ela fazia tenção de o tocar, mas ele ordenava que não se mexesse. Mulher despida haveria que estar quieta. Se assim não fosse, o desejo dele escapava, volátil como um perfume derramado. Mwadia perguntava-se pela razão daquela exigência de imobilidade. Agora, ela sabia. Zero Madzero sentia medo. Esse medo que os homens nutrem das mulheres, desses antigos demônios que apenas o gesto feminino pode soltar.
Mwadia fechou os olhos e a si mesma se acariciou. E sonhou que as mãos que percorriam o seu corpo eram as do burriqueiro, ante o olhar atento do asno Mbongolo. Então, cumpriu-se o destino daquela terra de miragens: o pastor a teve, toda ela um gemido na tempestade das suas mãos. No final, o homem beijou-a como se faz nas cidades, nos filmes, nos livros. Mwadia suspirou, em suave murmúrio:
Eu hoje estou muito eterna.
Mia Couto, in O outro pé da sereia

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