sexta-feira, 18 de agosto de 2017

O dia de São Nunca (trecho)

Com a palavra, o povo:
Isso só pode ser arte de Satanás.
Agora, essa. Arte de Satanás. Arte de vagabundo. Arte de moleque descarado.
Eu vi. Juro que eu vi. Uma bola grandona, que chegava a me entontecer. Eu estava chegando da roça e fiquei parado, sem conseguir ir para a frente nem para trás. Pensei que foi o sol que tinha caído. Depois a bola sumiu de repente. Quase desmaiei. Pensei até que tinha perdido a fala. Que susto. Acreditem se quiser, eu vi. E sou capaz de jurar que era o tal de disco voador.
Por que você não entrou nesse tal de disco voador e não voou com eles para São Paulo? Você não vive dizendo que quer ir para São Paulo?
Vocês não acreditam. Não tem jeito.
Chegou um sujeito aí dizendo que viu um negócio muito esquisito na estrada. Um carro que vinha a toda velocidade, com os faróis acesos, e quando chegava perto dele sumia.
Olhaí, seu delegado. Eles ainda estão por perto. As balas do seu fuzil pegam em carro encantado?
Se continuarem com essa mangação, boto todo mundo na cadeia — o delegado se enfezava. Estava a ponto de explodir.
Vai botar as pessoas erradas, delegado.
Em vez dessa fuxicaria toda, por que é que a gente não toma uma providência?
Tome você, já que está tão interessado — disse o delegado. — Tem o meu consentimento.
Ora, delegado, quem é a autoridade? — Como é que o delegado pode pegar um disco voador?
Mandando buscar outro disco voador. Na capital deve ter dúzias deles.
Quem foi que veio com essa conversa besta de disco voador?
Eu. Por quê?
Ah, foi você? Ainda bem. Assim eu acredito.
Pode acreditar mesmo.
Acredito, já disse.
Vocês não acreditam porque são uns ignorantes. Nunca ouviram A Voz do Brasil. Mas eu ouço. Todas as noites. E fico sabendo de tudo o que existe. E disco voador existe.

Sabe o que eu acho — cortou um que queria paz —, eu acho que se Humberto de Tote Vieira tivesse aqui nada disso estava acontecendo. A gente já tinha dado um jeito nesses bandidos.
E quem é esse tal de Humberto que eu não me lembro?
É um filho daqui, que mora lá pelo Sul. Trabalha na televisão. É ele quem entrevista Mao Tsé-tung, toda vez que Mao Tsé-tung vem passear em Copacabana.
E quem é esse diabo desse Mau-não-sei-quê? Oxe!
Tá vendo? Aquele ali é quem tem razão. Vocês não sabem nada porque não ouvem A Voz do Brasil.
E o que é que esse Humberto ia fazer?
Ia dar a notícia nas rádios e na televisão e aí as polícias, mais para adiante, iam barrar os paulistas. Vocês não sabem que as estradas têm barreiras? É nas barreiras que se pega os fugidos da polícia.
É verdade isso, delegado?
Ele não respondeu. Queria dar um fim ao caso, mas não sabia de que jeito. O povo daqui é assim: quando agarra num assunto, vai com ele até o resto da vida. Neste lugar nunca aconteceu nada que desse trabalho à polícia. Aconteceu a vinda destes três forasteiros. Para a desgraça do delegado. O povo reclama, pede justiça. O povo põe a culpa nele. O delegado está a ponto de ficar louco. Ameaça se retirar. Queria sumir das vistas desta gente. Não permitem a sua saída. Sempre senhor de seus atos, o delegado agora é um escravo de todos. Pensa: “Que droga. Por causa de três paulistas desocupados e de um menino aleijado. Uma tempestade num copo d’água.”
Não vá já, não, doutor. Queremos lhe ajudar.
Ajudar em quê? Agradeço muito a boa intenção, mas não estou precisando de ajuda.
O caso, delegado, é que a mãe do menino tá com a bola frouxa. Ela diz que vai amanhã na capital. Vai dar queixa do senhor ao Governador. E ela vai mesmo. Já conseguiu até o dinheiro emprestado para fazer a viagem.
Deixa ela ir. O que é que eu posso fazer?
Pode prender essa velha, não pode? Pode prender até por desacato à autoridade. Ela não lhe xingou na cara de todo mundo? Amarre ela na cadeia que ela não vai.
O conselho era malicioso e o delegado sabia disso. Agora preparavam-lhe uma armadilha.
Isso é um absurdo — interveio um dos homens, disposto a tudo. — Os moleques à solta e a mãe do menino na cadeia? O povo vai se revoltar.
Já estou revoltado — disse o do disco voador. — Essa conversa toda já está me deixando revoltado. Quanto mais a gente fala, mais eles fogem. E ninguém faz nada.
Quem foi que falou em Humberto de Tote Vieira?
Eu.
Então por que você não passa um telegrama pra ele? Talvez já resolvesse. O negócio da notícia na televisão.
Telegrama? Tá sonhando. Só se passa telegrama daqui a 15 léguas. Neste buraco até carta só sai de oito em oito dias. Não me diga que você não sabe disso.
Eu estava apenas dando uma ideia.
Com ideias assim, sabe o que você deve fazer?
Calma lá, calma lá — disse o delegado. — O primeiro que abrir a boca sobre este assunto vai pra cadeia. Estou falando sério. Meto todo mundo na cadeia. E quem me desrespeitar...
Diga, delegado: leva bala. Quem me desrespeitar, leva bala. Diga isso da sua própria boca.
Isso mesmo. Quem me desrespeitar, leva bala. Passo fogo em todo mundo. — O delegado repetiu a ameaça umas três vezes, talvez para ter certeza absoluta de que era o que lhe restava fazer. E todos viram a praça em guerra, a velha praça esfarrapada, pobre e quieta que dormitava há mais de um século, porque nasceu sossegada e parecia que viveria sossegada até o fim do mundo. Ia ser um flagelo. Há poucas horas ninguém haveria de pensar numa batalha por aqui, e esta batalha estava por arrebentar, para nossa própria surpresa. A cena era confusa, como num sonho. De um lado o delegado e seus dois soldados, atirando a esmo. De outro lado homens, mulheres e crianças, com seus cachorros, pedras, paus, estilingues e espingardas de caçar codornas. O delegado e os dois soldados eram pouco, mas iam dar muito trabalho. Suas armas eram mais perigosas, todos sabiam. Mas não houve guerra, não foi desta vez que o lugar arrebentou. E não houve por uma razão muito simples: o delegado se retirou, sem dar maiores satisfações. Provavelmente ia para a cama. Ia contar carneirinhos até o sol raiar.
Antônio Torres, in Meninos, eu conto

Nenhum comentário:

Postar um comentário