segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Na encruzilhada

À meia-noite, a natureza instala no mundo diversos palcos para que estranhas manifestações tenham a oportunidade de suceder. Ruídos bafientos, cruzamentos de espécies diferentes, violações de campos desertos, chuvas brilhantes, murmúrios de melaço, ocorrências mais assim — equívocas.
Foi uma vez: dois compadres caminhavam. Com olhares, escavavam o breu.
O Outro tinha uma barba imodesta, desarrumada em seus crespos pelos. Acompanhava-o, há anos, um tédio pegajoso que nem os futebóis nem as cervejas conseguiam despregar. Um semblante gêmeo da face obscura da lua. Os olhos, como que amarelados, em franca sonolência. Os pés, metidos muito para dentro, faziam dele um ser desinteressante a quem chamavam, com leveza, “o Outro”.
Ó compadre — começou o Outro. — O compadre frequenta encruzilhadas?
Eu? Frequentar encruzilhadas? — suspiro. — Deus me livre!
Mas porquê? Tem medo?
Eu? Ter medo? Não me faça rir, compadre!
Então... — pensativo, o Outro. — Se não frequenta encruzilhadas, tem medo delas.
Eu?! Medo delas? Tenha juízo, compadre.
Caminhavam. As árvores ao largo chocalhando barulhinhos de folhas nervosas, irritadas com o vento. A lua (quase) grávida, faltando-lhe uma unha negra para isso. E o mocho, certeiro, no seu olhar e pio.
Quer dizer que o compadre não tem medo de se pôr, à meia-noite, numa encruzilhada...? — o Outro recomeçou.
Eu? À meia-noite? Não tenho medo nenhum... mas não tenho razão para fazer isso, compadre.
Então fazemos uma aposta...! — pararam de caminhar.
Nós? Uma aposta? Pois seja, compadre; veja lá, não se vá endividar mais... Depois a comadre reclama — sorriu.
Se o compadre não tem medo de estar à meia-noite numa encruzilhada, também não tem medo que lá apareçam determinadas criaturas... — voltaram a caminhar.
Eu, medo d’outras criaturas...? Mas quê, fantasmas vestidos de branco? Assombrações? — desatou na sua aguda gargalhada.
Ou outras mesmo... — o Outro olhou-o seriamente. — Numa encruzilhada, à meia-noite, tudo pode suceder.
Bem — cogitou o compadre. — Se aparecer o Diabo é mais grave... Se for um lobisomem não há problema nenhum.
Então..., o compadre também não tem medo de lobisomens?
Eu? Medo do lobisomem?! Ó compadre, por amor de Deus! Por amor de Deus... Até lhe fazia festinhas!
O Outro coçou a barba, a mansos modos, numa apreciação da aposta possível — as unhas longas arranhando os incrustados pelos. A barba cerrada não permitia ver o queixo, a ossadura proeminente, as cicatrizes. Olhou a lua. Falou:
Então aposto consigo, compadre — pensativo.
Sim? O quê que aposta, compadre?
Aposto que o senhor amanhã não tem coragem de vir à encruzilhada, precisamente à meia-noite...
Quem, eu? Precisamente à meia-noite? Por amor de Deus, compadre... Está apostado! E vamos apostar o quê?
Aquela sua medalha de prata, compadre — sorriu o Outro, mas sorriu apenas usando o interior da garganta.
Pois seja, compadre. E se eu ganhar, aquele seu garrafão de vinho muito antigo... O que acha?
Pois seja, compadre... Mas amanhã, virá sozinho.
Pois sim, sozinho, claro está — sorriu o compadre.
Então está combinado. Meia-noite, sozinho — disse o Outro.
Seguiram calados. O mocho cessou o seu assobio noturno. A lua subia, subia, querendo esconder-se.
O dia seguinte passou de repente. O fim da tarde, a mais bem dizer, encontrou o compadre na taberna. Um copo atrás do outro, como convém ao bom cliente. O sabor delicado do vinho afagando a língua, pendurando-se na garganta, violando os ácidos corrosivos do estômago. Mais um, Belito. Traga-me só mais um..., disse, vezes sem conta.
O compadre, bem-disposto, jantou em casa. Lá pelas onze, pôs-se a caminhar em direção ao local combinado. A digestão exigiu um passo mais lento, os minutos estenderam-se. E, finalmente: a encruzilhada — um vislumbre de sombras dançantes.
A lua causa na terra sombras bem distintas das do sol. Enjeitadas figuras prateadas, um capim que dança ao vento, uma árvore gigante, um pássaro que, tardado, voa. Em plena encruzilhada, parou — o compadre. Do capim movediço, um grupo insignificante de gafanhotos voou, deixando à vista nua dois ou três pirilampos que se haviam escondido. Bem digo, a lua causa na terra sombras de prata que ornamentam encruzilhadas. À meia-noite.
O compadre quase adormecia. Esperar, no fundo, não passa de um exercício de paciência, um modo de estar pouco próprio aos humanos. Já as árvores suportam melhor esse estádio.
Encostou-se à árvore.
Por mais que quisesse ignorar, era difícil: sentiu, no cachaço, um ar quente penetrar-lhe a espinal medula. Do vinho..., pensou. Mas seguido de um arrepio gélido, o bafo fez-se sentir mais consistente. Uma respiração certeira, um momento próprio para se arrepiar de verdade. Querem ver...?
Virou-se, tão súbito quanto o álcool permitiu. Olhou, castanha, maciça, a árvore. E sentiu, instantaneamente, a quentura cobrir-lhe o pescoço, quase uma massagem gasosa; uma almofada de ar; um carinho quente. Apetecia deixar-se adormecer. Mas, a aposta! O Diabo não é! Não cheira a nada, não vejo fogo, não está o cão que o acompanha. Sorriu. Virou-se, novamente. Os capinzais dançavam mais exaltados. A lua estava prestes a parir, esférica como num poema; úmida até, pareceu-lhe.
Ouviu o primeiro ruído. Que susto — que susto!
Era uma passada consistente, uma boa quantidade de capim pisado. Arrepiou-se. Sentiu-se invadido por uma sinfonia de movimentos nos pelos dos braços, aperto de bexiga, esticão na coluna e umidade no olhos.
Ouviu o segundo ruído. Nitidamente, um arfar.
A criatura respirava a modos profundos, gastava muito oxigênio de cada vez, só podia ser grande. No chão, a sombra da evidência: a criatura era enorme. O compadre, ainda tonto, afastou-se da árvore, posicionando-se bem no centro da encruzilhada. Continuava com a sensação do bafo arfante no pescoço mas, virando-se, nada vislumbrava. No chão, quase em relevo, a sombra mantinha-se. Que criatura se expressa assim, a metades de consistência?
Fechou os olhos por segundos. Antes de os abrir, sentiu o primeiro cheiro. Quase se absteve de voltar a espreitar a realidade. O cheiro: um misto de cavalo, terra, avestruz... ou, simplesmente, o suor de um antílope. Abriu os olhos: o monstro enorme abriu a boca fétida. Urrou, expansivamente.
Mas!, diz que o susto é uma construção interna, carecendo de pressupostos. E o compadre não estava munido deles. A criatura estremeceu. Urrou expansivamente, como foi dito, bem junto à face neutra do compadre. E urrou renovadamente. O segundo cheiro chegou, vindo da boca: mistelas antiquíssimas, ervas raras, penas de pato, vinho e lama.
E, espante-se, o compadre sorriu.
A criatura quase entrou em pranto. Uma timidez repentina invadiu-a. O compadre não dispunha de condições para o devido susto. Aliás, o compadre sorriu, ele sim, desabando numa enorme gargalhada, ecoada nos mistérios daquela encruzilhada. Olhou para cima, para o cimo da criatura. Cambaleante, falou assim:
Calma, compadre!, calma. Não fique assim... É só uma aposta!
Ondjaki, in E se amanhã o medo

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