sábado, 26 de agosto de 2017

A estratégia do furão

Na literatura, o que importa está sempre ausente. Um romance não é uma tela que aprisiona o mundo, prende-o em uma moldura e depois o apresenta (como um criminoso algemado) ao leitor. A literatura está, mais, no esforço de perseguição do que na captura e exposição do que se persegue. Não chega a ser o que está dentro de um livro, é mais a luta que um livro esconde.
Essas ideias, que desarranjam nossa noção serena de literatura, se insinuam durante a leitura de “Visita à oficina”, ensaio do escritor português José Cardoso Pires (1925-1998), que agora serve de posfácio à edição comemorativa dos quarenta anos de O delfim (Bertrand Brasil, prefácio de Teresa Cristina Cerdeira). No texto (publicado originalmente em 1977 na coletânea de ensaios E agora, José?), Cardoso Pires se atreve a uma experiência de que os escritores, em geral, se esquivam: a crítica feroz de si. Contudo, mesmo o escritor que decide escrever um ensaio, nos mostra Teresa Cristina, continua a ser um ficcionista. “Visita à oficina” é, de certo modo, uma segunda ficção a propósito de uma primeira ficção.
O crítico Cardoso Pires faz de tudo para encontrar traços perduráveis em seu protagonista, Tomás Manuel, conhecido como O Engenheiro. Persegue-o com a tenacidade de um furão – um desses mamíferos bisbilhoteiros que, obstinados, não se cansam de cavucar a terra. Apesar do esforço, ele nada encontra: nenhuma imagem fixa, nenhuma psicologia, rastro algum de uma “identidade”. Fica com sua procura. Busca que, enfim, é seu romance.
Na aparência, O delfim é um romance policial. Sempre julgamos que, ao fim de uma busca, se formos aplicados e inteligentes e esforçados, chegaremos a um tesouro ou, ao menos, se revelará o nome de um criminoso. Em resumo: o esforço seria a garantia de um final feliz. Mesmo que infeliz, teríamos nas mãos um desses fechos polidos, que vêm restabelecer a serenidade e a boa digestão do leitor.
De certa forma, é o que O delfim, desde as primeiras páginas, promete. De que trata o livro? Um escritor viaja ao antigo condado da Gafeira, em Portugal, para uma temporada de caça. Lá, ele se relaciona com os últimos descendentes da família Palma Bravo: Tomás Manuel, sua mulher Maria das Mercês e o servo Domingos. Seduzido pela atmosfera de província, ele toma notas para um romance. Quando O delfim começa, um ano depois, o escritor está de volta ao condado, disposto a repassar as primeiras anotações. Em um ano, porém, a história se revirou. Maria das Mercês e Domingos estão mortos – foram assassinados. O patrão, Tomás Manuel, desapareceu – fato que o transforma em um suspeito. Há, agora, um mistério a investigar, o que empurra o escritor e caçador para a aventura da narrativa policial.
Ele se vê preso, então, à “curiosidade, a terrível curiosidade que leva o ouvinte de lendas e de milagres a aflorar os lugares proibidos”. A esperança de uma solução o agita. Tomás Coelho se torna, a partir daí, a figura central de um sistema de motivos e de suspeitas, que pede um desfecho. Mas a literatura não fornece soluções. Instrumento de duas pontas, ela arrebenta ali mesmo onde costura. O delfim está longe de ser um romance policial. É tudo menos isso. O mote detetivesco é só uma desculpa que permite a Cardoso Pires avançar sobre o que realmente o interessa: o ritmo rebelde e desconexo com que a vida se move.
Pode a literatura dar conta da vida? Não, não pode. E nem é para isso que ela existe. O escritor, mesmo um escritor com alma de furão, escreve para lutar, e não para conferir fecho ou diagnóstico. Escreve como alguém que sopra um fogo, não para apagá-lo (o que seria o mesmo que “solucioná-lo”), mas, sim, para atiçá-lo.
José Cardoso Pires gostava de repetir uma frase do poeta americano William Carlos Williams: “Sem ser católico, ouço os sinos”. A frase separa a sensibilidade da crença. Lamentava-se: “Só muito de raro em raro consigo descobrir nos sinos qualquer pureza”. Os sinos, que nos enganam com sua limpidez, anunciam não um encontro, mas um desencontro. Ali onde a literatura (os sinos) ressoa, nada se fecha.
Inevitável lembrar de Por quem os sinos dobram, a novela de Ernest Hemingway, escritor que Cardoso Pires sempre desejou ser. Ele falava da presença decisiva de Anton Tchecov e de Edgar Allan Poe em sua formação. Mas nenhuma delas, dizia, superava a influência de Ernst Hemingway. “Com ele aprendi que a separação entre o jornalismo e a literatura só convém aos jornalistas que escrevem mal.” Para Cardoso Pires, o escritor, como o repórter, é um perseguidor. Mas, enquanto o repórter precisa encontrar, no fim de sua jornada, um objeto que lhe sirva de matéria, o escritor deve persistir na busca, contentar-se com ela.
O delfim nos mostra que, quanto mais o escritor busca, mais seu objeto, em vez de clarear, se desfigura. As várias investidas sobre o real, em vez de tornarem o mundo mais nítido, o tornam mais complexo. Cardoso Pires admirava a pintura de Henri Matisse, um artista que dizia não pintar as coisas, “mas as relações entre as coisas”. Transposta para a escrita, essa fórmula o conduziu a uma literatura que, mais que reter o mundo, pretende alvoroçá-lo. Fixar o movimento: eis o ideal impossível dos escritores. Pois, uma vez fixado, o movimento se estanca, deixa de se mover. Do mesmo modo, uma vez capturado pela bala assassina, um furão morre. Sabedoria dos caçadores.
Um de seus maiores amigos, António Lobo Antunes gosta de lembrar os passeios noturnos que faziam juntos. A peregrinação (caça) de taberna em taberna, anestesiados pela mesma mistura de bebida e cansaço. Amálgama que levava Lobo Antunes a cambalear, enquanto o amigo, ao contrário, “flutuava à minha volta como um anjo de óculos”. A figura etérea do anjo não é casual. Refere-se a um eterno flutuar, que nunca pousa. Falava de um sobrevoo. “Cada livro é uma tentativa de me identificar mais comigo próprio”, dizia Cardoso Pires. Tentativas que, por nunca chegarem a um bom termo, formam a única imagem, inacessível, que dele nos restou.
José Castello, in Sábados inquietos

Nenhum comentário:

Postar um comentário