terça-feira, 18 de julho de 2017

Ter duas pernas me parece pouco

Eu não sabia como era a fronteira. Como seria? Nunca tinha visto uma fronteira. Teria orquestra? Teria. E baile e festa e tiro ao alvo. E circo? Orquestra, com certeza. Circo, não sabia.
Já levava dias a cavalo, mas não estava cansado. Comia o que podia e tinha fumo de sobra. Sabia que a fronteira ficava no rumo norte e tocava em frente sem medo nem pressa. As estrelas, de noitinha, corrigiam meu rumo. Na verdade, era o cavalo que sabia. Eu conversava, pedia para ele não se confundir: olha aí, vamos pro norte. Ele ia ao sabor do vento.
Eu estava descalço e sem esporas, com as calças arregaçadas acima dos joelhos, e estava com minha perna nua grudada no seu couro, como se fôssemos para a guerra montonera.
Quando vinha a noite, desmontava. Debruçava na beira de um arroio e os dois tomávamos água. Não o amarrava nunca. Eu me estendia a picar fumo de corda, debaixo de uma árvore, e via quando ele saía pastando por perto. Nunca o vi dormir. Nem bem chegava a manhã, ele me despertava relinchando suave e empurrando minhas pernas com o focinho, antes que o sol pudesse espetar meus olhos por trás dos galhos. Então saíamos, cedinho, trotando a trote longo.
Eu tinha ido embora porque queria mudar. Senão, no dia menos esperado ia estar dentro do caixão de morto sem saber para que existira. Pensava nos caras que não têm novidades novas para contar, e não sobra outro jeito que contar novidades velhas ou pichar os outros. Para mim, valia mais morrer que seguir vivendo assim, carregando água para as casas e dá-lhe lustrar sapatos na estação do trem e sempre com dor nos rins. Viver assim, para quê? Claro que se todos começarmos a pensar em morrer e começarmos a morrer estaremos fritos. A gente tem que buscar um jeito de não morrer. Pensava em Cristo, que há uns dois mil anos está na luta filosófica e na quantidade de dias que estavam me esperando para que eu os vivesse. Pelo meio das orelhas daquele cavalo, podia ver o mundo inteiro, que era enorme e não era de ninguém e tinha um cheiro de capim e couro úmido de montaria.
Pensava na sorte que tinha por ter nascido homem. Pensava em minha irmã maior, que ferraram porque não se casaram com ela, e em minha irmã menor, que ferraram porque se casara. E em minha mãe, que quis viver outra vida mas não sabia qual e dormia com os olhos abertos desde a noite em que meu velho a roubou dos ciganos. E em todas as mulheres de minha vida curta mas poderosa e tristemente célebre. Porque eu, mulher que vejo, mulher que me dá vontade de botar na horizontal e meter-me lá dentro, eu levo para o morrinho atrás do cemitério, ali entre a rua Domingo Petrarca e a rua das Mulas, de onde antes saíam os carros do curral. As mulheres nascem para isso, e por isso se enlouquecem sem precisar de vinho.
Eu queria conseguir tinta, embora não soubesse como, antes de chegar na fronteira. Gostaria de passar para o outro lado com o cavalo verde e as crinas amarelas, em homenagem ao país irmão, porque essas coisas impressionam muito. Lá os pretos são todos doutores e certamente estariam à minha espera com uma parrillada gigante. Fechava os olhos e via as costeletas douradas jorrando gordura e uma fogueira de troncos e um braseiro desses lindos de se olhar de noite. Eu ia entrar a galope com o pingo colorido por baixo de um arco de trepadeiras e haveria pelo menos uns 20 clarins chamando para a festa.
Quanto mais me aproximava, mais contente estava. Porque lá são as mulheres quem tiram as roupas dos homens, aos poucos, aos pouquinhos, como quem descasca uma banana, e pintam paisagens de todas as cores nas barrigas dos homens, o morro do Corcovado com Cristo e tudo, e depois tomar banho é uma lástima.
Andava por uma trilha estreita, louco por causa dos espinhos, os mangangás zumbindo pertinho, e de repente dei de cara com uma dessas planícies que a gente vê no cinema, muito selvagem, com uns pastos do tamanho de uma pessoa que o vento movia em ondas bravas, e debaixo deles andavam as lebres, no cio, perseguindo-se como flechas. Cruzei todo esse campo e depois atravessei um riacho cheio, e eu sempre com a impressão de que um assunto muito importante estava espalhando-se pela atmosfera.
Desci do cavalo, abri uma porteira e tornei a montar. Então, justo quando estava passando a perna para o outro lado, vi que de longe vinha um cavaleiro atravessando o campo. Esperei o cavalo, com toda a emoção.
O cavaleiro vinha para cá e eu ia para lá. Sentia como se o campo estivesse adormecido e eu ia despertando-o ao passar, com uma alegria sem fim. Até aí, eu sempre fizera uma volta quando podia cruzar com alguém; evitava o humano como se fosse onça ou cobra. Mas esse tipo eu via, aproximando-se, com sua capa negra voando ao vento, envolvido na neblina vermelha que as patas do cavalo levantavam, e – como dizer? – éramos como dois caudilhos que iam se encontrar. Assim era misteriosa minha vida naqueles momentos cruciais da existência.
O coração batia com toda a vontade e eu não sabia que iam me engaiolar por três anos por andar escapando com cavalo alheio, embora soubesse que ele fosse propriedade privada de outro. Eu estava louco de alegria e não tinha nem ideia de que a fronteira tinha ficado para trás, que tinha passado por ela sem perceber, nem sabia que o homem de capa negra era um tira. Como ia saber? Todos os policiais têm pinta de polícia, já nasceram assim, e por isso não servem para outra coisa. Todos, menos aquele cara, que na verdade, visto de longe, puxa... parecia um tremendo justiceiro, como o Zorro.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

Nenhum comentário:

Postar um comentário