Pergunte
ao pó na estrada! Pergunte às arvores de Josué, solitárias, onde
o Mojave começa. Pergunte a elas sobre Camilla Lopez e lhe
sussurrarão o nome dela. Sim, o último a ver minha namorada Camilla
Lopez foi um tuberculoso que morava na beira do Mojave, e ela
caminhava para o leste com um cachorro que eu lhe dera, um cachorro
chamado Pancho, e ninguém mais viu Pancho de novo também. Vocês
não vão acreditar nisso. Vocês não vão acreditar que uma garota
começaria a atravessar o deserto do Mojave em outubro sem nenhuma
outra companhia além de um jovem cachorro policial chamado Pancho,
mas aconteceu. Vi as pegadas do cão na areia e vi as pegadas de
Camilla ao lado das do cão, e ela nunca voltou para Los Angeles, sua
mãe nunca voltou a vê-la, e, a não ser que um milagre tenha
acontecido, ela está morta lá no Mojave esta noite e Pancho também.
Não tenho de tecer um enredo para este meu segundo livro. Aconteceu
comigo. A garota se foi; eu estava apaixonado por ela, e ela me
odiava, e esta é a minha história.
Pergunte
ao pó na estrada. Pergunte ao velho Junipero Serra no Plaza, sua
estátua está lá, e lá estão também os riscos nela onde acendi
meus fósforos, fumei cigarros e observei a humanidade passar, eu,
John Fante e Arturo Bandini, dois em um, amigo do homem e da besta
também. Aqueles eram os bons dias! Eu andava por aquelas ruas e as
sugava, e sugava as pessoas nelas, como um homem feito de fibra de
mata-borrão. Arturo Bandini, com um conto vendido, grande escritor,
sonhando grandes planos. Ainda posso ver aquele sujeito, aquele
Bandini, com uma revista de capa verde debaixo do braço,
perpetuamente debaixo do seu braço, caminhando por esta cidade com
uma tolerância gentil pelo homem e pela besta também; ele era um
filósofo, jovem, a simples história de um escritor que se apaixonou
por uma garçonete de bar e foi mandado passear.
Mas
vejam, deixem-me tentar contar a minha história. Apaixonei-me por
uma garota chamada Camilla Lopez. Entrei num café uma noite e lá
estava ela e, muito, muito depois, mesmo agora, esta noite, quando
escrevo a respeito, eu engasgo ao pensar na beleza daquela garota.
Ela estava lá, ao meu lado, era uma garçonete de cervejaria,
trouxe-me café e achei que era um café horroroso e conversamos.
Então eu voltei, repetidas vezes, e logo estava tão loucamente
apaixonado que me comportava como um tolo, e o tempo todo ela amava
outro, ela amava um garçom do Liberty Buffet, onde ela trabalhava, e
o garçom não a suportava. Então ela saiu comigo, para se esquecer
dele, ia a toda parte comigo, e eu estava maluco por ela, e a coisa
piorou, e ela piorou em relação ao garçom. Começou a fumar
maconha. Ela me ensinou a fumar. Ela endoidou. Foi colocada num asilo
de loucos. Ficou lá um mês. Saiu e eu a vi de novo. Ainda estava
apaixonada por Sammy, o garçom. Ele não a suportava. Não a
suportava porque ela era simplesmente uma mexicana e ele era um
americano e ela estava abaixo dele, e esta é a história — este é
o tema de Ramona, só que desta vez é um ítalo-americano que conta
a história, e ele, Bandini, tem simpatia pela garota porque entende
como funciona essa coisa de preconceito social, e ele a ama
loucamente e ela não consegue entendê-lo. Ele é um escritor. Está
sozinho em Los Angeles. Escreve sonetos para esta garota. Ela lê os
sonetos e os joga na rua. Pergunte ao pó na rua, pergunte ao pó no
Liberty Buffet, pergunte à desgraçada serragem suja daquele local e
ela dirá que recebeu pedacinhos de papel picados e eles eram meus
sonetos, porque ela não ligava para mim, eu só a divertia, ela
estava louca pelo americano Sammy.
Não
acha que tenho um romance? Ouça, com os diabos, conheci Camilla e,
na primeira noite, fomos à praia e nadamos nus, e ela nadou bem
longe, bem além do quebra-mar da baía de Santa Monica. Dirigimos
até lá no carro dela e ela nadou para longe, a distância sob o
luar, bela garota, bela Camilla, oh, que inferno, como eu amava
aquela garota e que inferno, que desfeita ela me plantou, achava que
eu era um lunático, que dizia coisas engraçadas. Ela nadou bem
longe, longe demais para uma garota normal, e às duas da manhã
naquele oceano frio, e, ao quando a vi ao luar desconfiei de que era
o tipo de garota que entra em colapso sob pressão social, havia algo
sensível e belo nela mesmo então e sempre, uma garota exuberante,
cabelos negros, pele cremosa, nadando ao luar, me ousando a ir tão
longe quanto ela havia nadado, e eu não fui, nadei até certa
distância e cansei, e então ela voltou e nos enrolamos num cobertor
na praia e fomos dormir — um casal de crianças nuas, mas eu sentia
aquilo deitado ao lado dela então —, aquela sensação de que
jamais possuiria essa garota, sentia que de certa forma ela era
veneno e que aquilo nunca aconteceria, sentia paixão sem desejo,
sentia a estranheza dela, sentia dentro de mim com a certeza do seio
de minha mãe, essa coisa devorando uma bela garota mexicana que
pertencia
àquela terra, debaixo daquele céu, e não era bem-vinda. E eu, o
solidário, o amigo de homem e besta também, pergunte à areia ao
longo da baía de Santa Monica se o grande Arturo Bandini foi tão
grande amante naquela noite, não não não, porque eu tinha pena
dela como um homem tem pena de sua filha, e não era paixão, eu só
sentia desejo e nunca passou disso. E, então, às cinco da manhã,
com o sol se erguendo lá no leste, descemos até Wilshire de carro e
ela ficou tão contente que eu não a havia tocado, ela dirigia, e
disse uma coisa estranha e significativa, lembro as palavras
exatamente, ela disse: “Foi uma noite tão bonita. Nunca mais
acontecerá de novo.” Mas havia sempre comigo a suspeita de que eu
havia agido como um tolo, não só naquela noite, mas em todas noites
que passei com ela, enquanto visitávamos muitos lugares estranhos e
fascinantes nesta grande cidade. Falo de Hollywood, com seu falso
brilho de lantejoulas? Dos filmes? Falo de Bel Air e Lakeside? Falo
de Pasadena e dos locais quentes nas redondezas? — não e não mil
vezes. Eu lhes digo que este é um livro sobre uma moça e um rapaz
numa civilização diferente: trata-se de Main Street e Spring Street
e Bunker Hill, sobre esta cidade não mais adiante de Figueroa, e não
há ninguém famoso neste livro e nada notório e famoso será
mencionado porque nada disso pertence a este livro, ou estará aqui
por mais tempo. É Ramona ao reverso. É bom. Sou eu mesmo.
Então
eu chamo meu livro de Pergunte
ao pó, porque o pó
do Leste e do Meio-Oeste está nestas ruas e é um pó em que nada
cresce, uma cultura sem raízes, uma ânsia frenética por
trincheiras, a fúria vazia de pessoas perdidas e desesperançadas,
frenéticas para alcançar uma terra que jamais lhes pode pertencer.
E uma garota desorientada que achava que as pessoas frenéticas eram
as pessoas felizes e tentava ser uma delas.
Arturo
Bandini, eu mesmo, grande escritor, com um conto vendido para The
American Mercury, o
conto sempre no meu bolso para provar meu sucesso enquanto rondava a
Ópera e observava os ricaços entrarem, às vezes me misturando à
multidão para tocar acidentalmente uma capa de arminho, apenas um
passante, me desculpe, madame, e pelas longas horas da noite eu
pensava nela, imaginando quem seria — talvez até a heroína de meu
grande romance, conversando com ela enquanto as luzes do St. Paul
Hotel piscavam vermelhas e verdes e lançavam cores sobre minha cama.
John
Fante, in A
grande fome: Contos (1932-1959)
Nenhum comentário:
Postar um comentário