sábado, 22 de julho de 2017

Prólogo para Pergunte ao pó (trecho)

Pergunte ao pó na estrada! Pergunte às arvores de Josué, solitárias, onde o Mojave começa. Pergunte a elas sobre Camilla Lopez e lhe sussurrarão o nome dela. Sim, o último a ver minha namorada Camilla Lopez foi um tuberculoso que morava na beira do Mojave, e ela caminhava para o leste com um cachorro que eu lhe dera, um cachorro chamado Pancho, e ninguém mais viu Pancho de novo também. Vocês não vão acreditar nisso. Vocês não vão acreditar que uma garota começaria a atravessar o deserto do Mojave em outubro sem nenhuma outra companhia além de um jovem cachorro policial chamado Pancho, mas aconteceu. Vi as pegadas do cão na areia e vi as pegadas de Camilla ao lado das do cão, e ela nunca voltou para Los Angeles, sua mãe nunca voltou a vê-la, e, a não ser que um milagre tenha acontecido, ela está morta lá no Mojave esta noite e Pancho também. Não tenho de tecer um enredo para este meu segundo livro. Aconteceu comigo. A garota se foi; eu estava apaixonado por ela, e ela me odiava, e esta é a minha história.
Pergunte ao pó na estrada. Pergunte ao velho Junipero Serra no Plaza, sua estátua está lá, e lá estão também os riscos nela onde acendi meus fósforos, fumei cigarros e observei a humanidade passar, eu, John Fante e Arturo Bandini, dois em um, amigo do homem e da besta também. Aqueles eram os bons dias! Eu andava por aquelas ruas e as sugava, e sugava as pessoas nelas, como um homem feito de fibra de mata-borrão. Arturo Bandini, com um conto vendido, grande escritor, sonhando grandes planos. Ainda posso ver aquele sujeito, aquele Bandini, com uma revista de capa verde debaixo do braço, perpetuamente debaixo do seu braço, caminhando por esta cidade com uma tolerância gentil pelo homem e pela besta também; ele era um filósofo, jovem, a simples história de um escritor que se apaixonou por uma garçonete de bar e foi mandado passear.
Mas vejam, deixem-me tentar contar a minha história. Apaixonei-me por uma garota chamada Camilla Lopez. Entrei num café uma noite e lá estava ela e, muito, muito depois, mesmo agora, esta noite, quando escrevo a respeito, eu engasgo ao pensar na beleza daquela garota. Ela estava lá, ao meu lado, era uma garçonete de cervejaria, trouxe-me café e achei que era um café horroroso e conversamos. Então eu voltei, repetidas vezes, e logo estava tão loucamente apaixonado que me comportava como um tolo, e o tempo todo ela amava outro, ela amava um garçom do Liberty Buffet, onde ela trabalhava, e o garçom não a suportava. Então ela saiu comigo, para se esquecer dele, ia a toda parte comigo, e eu estava maluco por ela, e a coisa piorou, e ela piorou em relação ao garçom. Começou a fumar maconha. Ela me ensinou a fumar. Ela endoidou. Foi colocada num asilo de loucos. Ficou lá um mês. Saiu e eu a vi de novo. Ainda estava apaixonada por Sammy, o garçom. Ele não a suportava. Não a suportava porque ela era simplesmente uma mexicana e ele era um americano e ela estava abaixo dele, e esta é a história — este é o tema de Ramona, só que desta vez é um ítalo-americano que conta a história, e ele, Bandini, tem simpatia pela garota porque entende como funciona essa coisa de preconceito social, e ele a ama loucamente e ela não consegue entendê-lo. Ele é um escritor. Está sozinho em Los Angeles. Escreve sonetos para esta garota. Ela lê os sonetos e os joga na rua. Pergunte ao pó na rua, pergunte ao pó no Liberty Buffet, pergunte à desgraçada serragem suja daquele local e ela dirá que recebeu pedacinhos de papel picados e eles eram meus sonetos, porque ela não ligava para mim, eu só a divertia, ela estava louca pelo americano Sammy.
Não acha que tenho um romance? Ouça, com os diabos, conheci Camilla e, na primeira noite, fomos à praia e nadamos nus, e ela nadou bem longe, bem além do quebra-mar da baía de Santa Monica. Dirigimos até lá no carro dela e ela nadou para longe, a distância sob o luar, bela garota, bela Camilla, oh, que inferno, como eu amava aquela garota e que inferno, que desfeita ela me plantou, achava que eu era um lunático, que dizia coisas engraçadas. Ela nadou bem longe, longe demais para uma garota normal, e às duas da manhã naquele oceano frio, e, ao quando a vi ao luar desconfiei de que era o tipo de garota que entra em colapso sob pressão social, havia algo sensível e belo nela mesmo então e sempre, uma garota exuberante, cabelos negros, pele cremosa, nadando ao luar, me ousando a ir tão longe quanto ela havia nadado, e eu não fui, nadei até certa distância e cansei, e então ela voltou e nos enrolamos num cobertor na praia e fomos dormir — um casal de crianças nuas, mas eu sentia aquilo deitado ao lado dela então —, aquela sensação de que jamais possuiria essa garota, sentia que de certa forma ela era veneno e que aquilo nunca aconteceria, sentia paixão sem desejo, sentia a estranheza dela, sentia dentro de mim com a certeza do seio de minha mãe, essa coisa devorando uma bela garota mexicana que pertencia àquela terra, debaixo daquele céu, e não era bem-vinda. E eu, o solidário, o amigo de homem e besta também, pergunte à areia ao longo da baía de Santa Monica se o grande Arturo Bandini foi tão grande amante naquela noite, não não não, porque eu tinha pena dela como um homem tem pena de sua filha, e não era paixão, eu só sentia desejo e nunca passou disso. E, então, às cinco da manhã, com o sol se erguendo lá no leste, descemos até Wilshire de carro e ela ficou tão contente que eu não a havia tocado, ela dirigia, e disse uma coisa estranha e significativa, lembro as palavras exatamente, ela disse: “Foi uma noite tão bonita. Nunca mais acontecerá de novo.” Mas havia sempre comigo a suspeita de que eu havia agido como um tolo, não só naquela noite, mas em todas noites que passei com ela, enquanto visitávamos muitos lugares estranhos e fascinantes nesta grande cidade. Falo de Hollywood, com seu falso brilho de lantejoulas? Dos filmes? Falo de Bel Air e Lakeside? Falo de Pasadena e dos locais quentes nas redondezas? — não e não mil vezes. Eu lhes digo que este é um livro sobre uma moça e um rapaz numa civilização diferente: trata-se de Main Street e Spring Street e Bunker Hill, sobre esta cidade não mais adiante de Figueroa, e não há ninguém famoso neste livro e nada notório e famoso será mencionado porque nada disso pertence a este livro, ou estará aqui por mais tempo. É Ramona ao reverso. É bom. Sou eu mesmo.
Então eu chamo meu livro de Pergunte ao pó, porque o pó do Leste e do Meio-Oeste está nestas ruas e é um pó em que nada cresce, uma cultura sem raízes, uma ânsia frenética por trincheiras, a fúria vazia de pessoas perdidas e desesperançadas, frenéticas para alcançar uma terra que jamais lhes pode pertencer. E uma garota desorientada que achava que as pessoas frenéticas eram as pessoas felizes e tentava ser uma delas.
Arturo Bandini, eu mesmo, grande escritor, com um conto vendido para The American Mercury, o conto sempre no meu bolso para provar meu sucesso enquanto rondava a Ópera e observava os ricaços entrarem, às vezes me misturando à multidão para tocar acidentalmente uma capa de arminho, apenas um passante, me desculpe, madame, e pelas longas horas da noite eu pensava nela, imaginando quem seria — talvez até a heroína de meu grande romance, conversando com ela enquanto as luzes do St. Paul Hotel piscavam vermelhas e verdes e lançavam cores sobre minha cama.
John Fante, in A grande fome: Contos (1932-1959)

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