segunda-feira, 17 de julho de 2017

Pé-duro


Enquanto noutras áreas mais amenas, em clima e pastos, se agasalham raças cuidadas, hindus ou europeias, em toda a rugugem maninha do desertão se afez, quase como seu único possível habitador cornifronte, o curraleiro — gado antigo, penitente e pugnaz, a que também chamam de pé-duro.
A alcunha parece ter sido dada primeiro aos negros, ou aos índios, de calosas plantas, pés de sola grossa, trituradora de torrões e esmagadora de espinhos. Daí, aos bois da raça conformada à selvagem semiaridez, o curraleiro beluíno e brasílico.
E esse é o elemento de arte do vaqueiro, a maneável matéria com que pensa e pratica o seu estilo:

Levanta-te, Boi Bonito,
oh meu mano,
com os chifres que Deus te deu...
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Mas o nome se estendeu a outros seres, os “da terra”, sem exigências, sem luxo mínimo nenhum, quase que nem o de comer e beber — cavalote pé-duro, o bode, o jegue: jumento pé-duro. E é, assim se ouve, o vaqueiro mesmo da caatinga — o homem pé-duro.
Pé-duro, bem; ou o homem duro, o duro, cascudo em seu individualismo ordenado, soberbo e humilde.
Austero é que tem mesmo de ser, apertado de estóico. É o posteiro menor, o vavassor da brenha, homem a quem os morcegos chupam o sangue.
Quer bem ao seu redor, onde os rios são voláteis, os dias são o sol, as noites brusca escuridão, a água obtida obnãotida, pasmosa a solidão, as tempestades pesadas, soltas as ventanias sem cara certa, o trabalho campanha, o passeio malandança, o repouso mortescência.
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Sua silhueta e a caatinga lívida compertencem — o ananás bravo ou o mandacaru vertical, em meio às folhas de fogo, espetos cruzados, árvores de força, mostrengos ramos dolorosos, tortura, e a catanduva crispa, onde, subida a seca, só pervive o que tem pedra na seiva, o que é em-si e híspido, armado, fechado.
Tempo o tempo, desterra-se ainda, mais, desavança, num congrego, contra o poente, busca de boiadas, muito para lá dos carnaubais do Rio, a outroutro sertão que sempre há depois, poeiras novas, chão perdido.
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Sua seu são pão de vida; e é feliz quando consegue morrer simplesmente, morrer mais velho, em sua casinha à beira da ipueira, com prazo para gemer entre seus parentes, cantante o campo, pedindo ainda um pouco de paz, um pouco de chuva.
Mexe o perigo quotidiano. Mais que para o jangadeiro, sua função é o grande risco, sua rotina astrosa. Dança de vigilância, cedo tem de aprendê-la, feito à rapidez com que o bovino abre suas hostilidades. Nas vaquejadas, ou na brutalidade das apartações — pesadelos nos currais grandes, por entre a poeira parda-verde do estrume e estrondos e mugidos de feras violentadas — a vida do homem é água em cabaça. São Campeiro o sabe, e Bubona e Apollo Kereatas; e a Senhora do Socorro. E ele:

Meu cavalo é minhas pernas,
meu arreio é meu assento,
meu capote é minha cama,
meu perigo é meu sustento.
. . . 
 
Mas seu mesmo companheiro e aliado, o cavalo de campeio, dá-se como assento trapaz, refalso, obrigando-o sem pausa a nenhum descuido; de tão ensinado em máquina de perceber o mínimo bole-boi — e reagir com sacalões ou o lombear-se ou volver e correr — que fácil derruba o cavaleiro melhor, ou quebra-o contra barranco ou árvore, se não atento no estribo, pronto para dono das rédeas e para o hábil jajogo dos revezes-de-sela.
O solo firme, até, é-lhe um poder de inimigo.
Pelo quando vim, dias, sertão abaixo, nas abas de um boiadão sanfranciscano, com respeito aprendi como os vaqueiros nunca deixavam de ler o chão pedrento, de o decifrar, com receio inocente e no automático assesto de mineralogistas.
Porque — vez vezes em que o cavalo disparado falseia a mão, num toco, oco de tatu, num fofo, e tropeça e se afunda avante, rolando cambalhotas com o cavaleiro — não é igual se o que há em baixo é o tauá roxo ou raso calcário piçarro ou gorgulhos de pedra-preta, ou uma itabira de hematita, um desforme de granito bloco ou bolos de seixão de pontas, mais assassinos.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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