Enquanto noutras áreas mais amenas, em
clima e pastos, se agasalham raças cuidadas, hindus ou europeias, em
toda a rugugem maninha do desertão se afez, quase como seu único
possível habitador cornifronte, o curraleiro — gado antigo,
penitente e pugnaz, a que também chamam de pé-duro.
A alcunha parece ter sido dada primeiro
aos negros, ou aos índios, de calosas plantas, pés de sola grossa,
trituradora de torrões e esmagadora de espinhos. Daí, aos bois da
raça conformada à selvagem semiaridez, o curraleiro beluíno e
brasílico.
E esse é o elemento de arte do vaqueiro,
a maneável matéria com que pensa e pratica o seu estilo:
Levanta-te, Boi Bonito,
oh meu mano,
com os chifres que Deus te deu...
. . .
Mas o nome se estendeu a outros seres, os
“da terra”, sem exigências, sem luxo mínimo nenhum, quase que
nem o de comer e beber — cavalote pé-duro, o bode, o jegue:
jumento pé-duro. E é, assim se ouve, o vaqueiro mesmo da caatinga —
o homem pé-duro.
Pé-duro, bem; ou o homem duro, o duro,
cascudo em seu individualismo ordenado, soberbo e humilde.
Austero é que tem mesmo de ser, apertado
de estóico. É o posteiro menor, o vavassor da brenha, homem a quem
os morcegos chupam o sangue.
Quer bem ao seu redor, onde os rios são
voláteis, os dias são o sol, as noites brusca escuridão, a água
obtida obnãotida, pasmosa a solidão, as tempestades pesadas, soltas
as ventanias sem cara certa, o trabalho campanha, o passeio
malandança, o repouso mortescência.
. . .
Sua silhueta e a caatinga lívida
compertencem — o ananás bravo ou o mandacaru vertical, em meio às
folhas de fogo, espetos cruzados, árvores de força, mostrengos
ramos dolorosos, tortura, e a catanduva crispa, onde, subida a seca,
só pervive o que tem pedra na seiva, o que é em-si e híspido,
armado, fechado.
Tempo o tempo, desterra-se ainda, mais,
desavança, num congrego, contra o poente, busca de boiadas, muito
para lá dos carnaubais do Rio, a outroutro sertão que sempre há
depois, poeiras novas, chão perdido.
. . .
Sua seu são pão de vida; e é feliz
quando consegue morrer simplesmente, morrer mais velho, em sua
casinha à beira da ipueira, com prazo para gemer entre seus
parentes, cantante o campo, pedindo ainda um pouco de paz, um pouco
de chuva.
Mexe o perigo quotidiano. Mais que para o
jangadeiro, sua função é o grande risco, sua rotina astrosa. Dança
de vigilância, cedo tem de aprendê-la, feito à rapidez com que o
bovino abre suas hostilidades. Nas vaquejadas, ou na brutalidade das
apartações — pesadelos nos currais grandes, por entre a poeira
parda-verde do estrume e estrondos e mugidos de feras violentadas —
a vida do homem é água em cabaça. São Campeiro o sabe, e Bubona e
Apollo Kereatas; e a Senhora do Socorro. E ele:
Meu cavalo é minhas pernas,
meu arreio é meu assento,
meu capote é minha cama,
meu perigo é meu sustento.
. . .
Mas seu mesmo companheiro e aliado, o
cavalo de campeio, dá-se como assento trapaz, refalso, obrigando-o
sem pausa a nenhum descuido; de tão ensinado em máquina de perceber
o mínimo bole-boi — e reagir com sacalões ou o lombear-se ou
volver e correr — que fácil derruba o cavaleiro melhor, ou
quebra-o contra barranco ou árvore, se não atento no estribo,
pronto para dono das rédeas e para o hábil jajogo dos
revezes-de-sela.
O solo firme, até, é-lhe um poder de
inimigo.
Pelo quando vim, dias, sertão abaixo,
nas abas de um boiadão sanfranciscano, com respeito aprendi como os
vaqueiros nunca deixavam de ler o chão pedrento, de o decifrar, com
receio inocente e no automático assesto de mineralogistas.
Porque — vez vezes em que o cavalo
disparado falseia a mão, num toco, oco de tatu, num fofo, e tropeça
e se afunda avante, rolando cambalhotas com o cavaleiro — não é
igual se o que há em baixo é o tauá roxo ou raso calcário piçarro
ou gorgulhos de pedra-preta, ou uma itabira de hematita, um desforme
de granito bloco ou bolos de seixão de pontas, mais assassinos.
Guimarães Rosa, in Ave,
palavra
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