Que
coisa estranha, ele pensava. Não se saber uma coisa tão simples:
que rezar em casa e na igreja é um costume do povo, de todos daqui,
gente devota o ano inteiro. Uma questão de fé. Os três visitantes
pareciam demonstrar que as pessoas das cidades não têm esses
costumes. Mas rezar gente, gado e passarinho doentes é bem
diferente. É uma forma de ganhar o sustento, um ofício. Sua mãe
não era apenas uma rezadeira. Era a única rezadeira desta terra,
sempre caminhando para cima e para baixo, com três galhos de arruda
atrás da orelha, sempre tentando socorrer um infeliz, um
desenganado. Ela chegava na casa do doente, pedia uma tigela com
água, molhava a arruda na água e ia rezando e balançando os galhos
de arruda em torno do corpo moribundo. Se no fim da reza os galhos
estivessem murchos, era sinal de que o doente ia melhorar, sua doença
era mau-olhado mesmo e estava passando do freguês para as folhas da
arruda. Sua reza era sempre a mesma e, mais importante do que ela,
eram os poderes da rezadeira e a fé do rezado. Sim, sem essa fé não
adiantava nada. (Aqui o menino imita a mãe, reza:)
Com
dois te botaram
com
três eu te tiro
com
pernas de grilo
que
vem do retiro.
É
de metetéia
é
de manenanha
que
esse menino fique bom
de
hoje pra amanhã.
Ele
balançou os dedos no ar, como sua mãe fazia, ao terminar a reza.
Era esse gesto que espantava o mal. A reza tirava o mal do corpo para
os galhos da arruda, e a batida dos dedos sacolejados no espaço
derrubava-o por terra, para debaixo do chão.
— Mamãe
me reza todos os dias — disse o menino, satisfeito com todas as
explicações que conseguia dar.
— E
apesar disso... — a moça não completou, mas ele percebeu o resto.
E apesar disso você continua assim. Ela disse outra coisa
rapidamente, para consertar: — Será que você não acredita nisso,
não tem fé nisso?
Como
se não tivesse ouvido esse pedaço da conversa, ele voltou a imitar
a mãe:
— “Que
esse menino fique bom, de hoje para amanhã” — riu. — “Acho
que amanhã é o Dia de São Nunca.”
— O
que é “é de metetéia, é de manenanha”? — a moça era quem
mais falava. Os dois rapazes, na maior parte do tempo, só se
preocupavam em tirar retrato.
— Não
sei. Acho que ninguém sabe. Palavra de reza a gente não precisa
saber o que é. Basta ter fé.
— Então
tenha fé — disse a moça, rindo.
Ele
gostou deste sorriso. Os dentes da moça eram alvos, muito bonitos.
Os
dois rapazes falavam entre eles, baixinho. Devia ser qualquer coisa
sobre as horas. O rapaz muito branco da cor do leite tirou o santo do
nicho. Olhou para os outros companheiros, olhou para o menino. Depois
foi levantando o santo com as duas mãos, devagarinho. Levantou-o até
onde seus braços podiam ir, acima da cabeça. O amarelo de olho
rasgado bateu palmas. Disse:
— Salve
o campeão do mundo. A Copa é nossa.
O
menino ficou olhando para o santo lá em cima, nas mãos do rapaz.
Disse:
— Reze,
meu filho, reze. Paizinho Santo Antônio vai te ajudar. Mamãe me diz
isso todo dia quando sai de casa. E eu rezo todo dia. Meu paizinho
Santo Antônio vai me ajudar.
— Claro
que vai — disse o branco, abaixando o santo. E, para os dois
companheiros: — Estranhíssimo, não é?
O
menino ficou orgulhoso com esta observação. Era um elogio ao santo,
ele pelo menos achou que era isso.
— Tudo
tão primitivo — repetiu a moça, balançando a cabeça e mordendo
os beiços. Parecia em desacordo com alguma coisa, que o menino não
chegou a adivinhar o que era.
O
amarelo de olho rasgado riu de uma maneira abestalhada, era uma
risada de maluco, um rá-rá-rá seco, de quem ria sem achar graça.
— O
que é que você está olhando lá em cima? — A moça emendou a
pergunta com outra: — Você se importa que se pegue no santo?
—
Estava conversando com minha irmãzinha.
Estava dizendo pra ela: “Eles gostam do santo, maninha. Eles também
gostam de santo.”
—
Irmãzinha?
— Sim.
Minha irmãzinha lagartixa.
Foi
aí que a moça fez aquela cara horrível, o assombro de gente
esquisita, que tem medo de tudo. E disse:
—
Lagartixa? Ui!
Agora
o menino só lamentava o pouco tempo que eles ficaram. Foi um tempão,
é verdade, mas com tanta coisa para conversar as horas voaram e eles
se foram. Tinham que ir para bem longe. Uma pena. Queria explicar
melhor o que pensava das lagartixas e contar direito todas as
conversas que tinha com elas. Ainda bem que eles prometeram voltar um
dia.
— Será
que eles voltam mesmo, mamãe? Reze pra eles voltarem.
— Sim,
meu filho. Vou rezar. Eles têm que voltar.
Antônio
Torres, in Meninos, eu conto
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