quarta-feira, 19 de julho de 2017

O dia de São Nunca (trecho)


Que coisa estranha, ele pensava. Não se saber uma coisa tão simples: que rezar em casa e na igreja é um costume do povo, de todos daqui, gente devota o ano inteiro. Uma questão de fé. Os três visitantes pareciam demonstrar que as pessoas das cidades não têm esses costumes. Mas rezar gente, gado e passarinho doentes é bem diferente. É uma forma de ganhar o sustento, um ofício. Sua mãe não era apenas uma rezadeira. Era a única rezadeira desta terra, sempre caminhando para cima e para baixo, com três galhos de arruda atrás da orelha, sempre tentando socorrer um infeliz, um desenganado. Ela chegava na casa do doente, pedia uma tigela com água, molhava a arruda na água e ia rezando e balançando os galhos de arruda em torno do corpo moribundo. Se no fim da reza os galhos estivessem murchos, era sinal de que o doente ia melhorar, sua doença era mau-olhado mesmo e estava passando do freguês para as folhas da arruda. Sua reza era sempre a mesma e, mais importante do que ela, eram os poderes da rezadeira e a fé do rezado. Sim, sem essa fé não adiantava nada. (Aqui o menino imita a mãe, reza:)

Com dois te botaram
com três eu te tiro
com pernas de grilo
que vem do retiro.
É de metetéia
é de manenanha
que esse menino fique bom
de hoje pra amanhã.

Ele balançou os dedos no ar, como sua mãe fazia, ao terminar a reza. Era esse gesto que espantava o mal. A reza tirava o mal do corpo para os galhos da arruda, e a batida dos dedos sacolejados no espaço derrubava-o por terra, para debaixo do chão.
Mamãe me reza todos os dias — disse o menino, satisfeito com todas as explicações que conseguia dar.
E apesar disso... — a moça não completou, mas ele percebeu o resto. E apesar disso você continua assim. Ela disse outra coisa rapidamente, para consertar: — Será que você não acredita nisso, não tem fé nisso?
Como se não tivesse ouvido esse pedaço da conversa, ele voltou a imitar a mãe:
— “Que esse menino fique bom, de hoje para amanhã” — riu. — “Acho que amanhã é o Dia de São Nunca.”
O que é “é de metetéia, é de manenanha”? — a moça era quem mais falava. Os dois rapazes, na maior parte do tempo, só se preocupavam em tirar retrato.
Não sei. Acho que ninguém sabe. Palavra de reza a gente não precisa saber o que é. Basta ter fé.
Então tenha fé — disse a moça, rindo.
Ele gostou deste sorriso. Os dentes da moça eram alvos, muito bonitos.
Os dois rapazes falavam entre eles, baixinho. Devia ser qualquer coisa sobre as horas. O rapaz muito branco da cor do leite tirou o santo do nicho. Olhou para os outros companheiros, olhou para o menino. Depois foi levantando o santo com as duas mãos, devagarinho. Levantou-o até onde seus braços podiam ir, acima da cabeça. O amarelo de olho rasgado bateu palmas. Disse:
Salve o campeão do mundo. A Copa é nossa.
O menino ficou olhando para o santo lá em cima, nas mãos do rapaz. Disse:
Reze, meu filho, reze. Paizinho Santo Antônio vai te ajudar. Mamãe me diz isso todo dia quando sai de casa. E eu rezo todo dia. Meu paizinho Santo Antônio vai me ajudar.
Claro que vai — disse o branco, abaixando o santo. E, para os dois companheiros: — Estranhíssimo, não é?
O menino ficou orgulhoso com esta observação. Era um elogio ao santo, ele pelo menos achou que era isso.
Tudo tão primitivo — repetiu a moça, balançando a cabeça e mordendo os beiços. Parecia em desacordo com alguma coisa, que o menino não chegou a adivinhar o que era.
O amarelo de olho rasgado riu de uma maneira abestalhada, era uma risada de maluco, um rá-rá-rá seco, de quem ria sem achar graça.
O que é que você está olhando lá em cima? — A moça emendou a pergunta com outra: — Você se importa que se pegue no santo?
Estava conversando com minha irmãzinha. Estava dizendo pra ela: “Eles gostam do santo, maninha. Eles também gostam de santo.”
Irmãzinha?
Sim. Minha irmãzinha lagartixa.
Foi aí que a moça fez aquela cara horrível, o assombro de gente esquisita, que tem medo de tudo. E disse:
Lagartixa? Ui!
Agora o menino só lamentava o pouco tempo que eles ficaram. Foi um tempão, é verdade, mas com tanta coisa para conversar as horas voaram e eles se foram. Tinham que ir para bem longe. Uma pena. Queria explicar melhor o que pensava das lagartixas e contar direito todas as conversas que tinha com elas. Ainda bem que eles prometeram voltar um dia.
Será que eles voltam mesmo, mamãe? Reze pra eles voltarem.
Sim, meu filho. Vou rezar. Eles têm que voltar.
Antônio Torres, in Meninos, eu conto

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