domingo, 9 de julho de 2017

O desmaio

Não olhe agora — pedi.
O que é? — se assustou Massimo.
Era pouco, apenas o tal homem que aparecera dias antes, o dono do malogrado cabrito. Não escapámos a tempo. O indivíduo se interpôs, pedinchorão:
Então, patrões?
Desta vez, apontei o italiano. Que era quem devia escutar a lamúria. Avisado eu estava: dá-se a esmola, mesmo a maior, e o mendigo se afastará sempre de mãos vazias. Mas este homem não se rubricava como pedinte. Reclamava sim a compensação de uma perda: que aquilo não era um qualquer cabrito, aquilo era um bicho de companhia, que só se afastava para cobrir umas tantas cabras. No resto, não fazia diferença de um cachorro, até ladrava contra os gatos. E abanar o rabo isso ele fazia com mais requinte que a própria Ana Deusqueira.
O melhor é mesmo dar-lhe qualquer coisa — sugeri a Massimo.
Afinal, o pobre fulano tinha a desgraça à perna. Era um pastor às ordens de Estêvão Jonas. Contudo, há meses que não recebia pagamento. Eu não queria ouvir o desfile de lamentos. Se Massimo não desse, eu mesmo esmolava o pobre. Mas o delegado da ONU remexeu os bolsos e tirou uma nota de dólar. Estendeu-a ao reclamante. Este examinou a nota com apuro e sacudiu a cabeça: que aquele dinheiro estava estragado. Lhe perdoasse Deus por amaldiçoar o santo papel, mas ele preferia as nacionais notas mesmo todas engorduradas. Aliás, ele, com o trauma de ver falecer a seus pés o seu estimado cabritão, até começara a sentir comichões no corpo todo. Carecia, portanto, de cuidados médicos, quem sabe pela vida inteira. E isso era maleita para mais que uma simples nota.
O italiano, farto, virou costas e se encaminhou para a administração. O lesado cabriteiro deixou-se ficar, contemplando o dólar à transparência. Eu corri para acompanhar Massimo, que já espreitava pela janela do velho edifício. Confirmava-se: o rádio transmissor ficara bem instalado na sede da administração, numa sala a que só ele tinha acesso. Eu o ajudara a instalar os aparelhos, montar a antena. Testáramos os aparelhos, tudo funcionava. O italiano, no entanto, não estava tranquilo. E tinha razão: no dia seguinte, o rádio transmissor já ali não estaria, sumido em estranha circunstância.
Agora, de boina azul na mão, Massimo se consumia em consumada preocupação: mais um soldado resumido a um sexo! Que podia ele escrever no relatório? Que os seus homens explodiam como bolas de sabão? Na capital, a sede da missão da ONU esperava notícias concretas, explicações plausíveis. E o que tinha ele esclarecido? Uma meia dúzia de estórias delirantes, no seu parecer. Sentiu-se só, com toda África lhe pesando.
Porca madonna! — comentou, suspirando.
O suspiro não lhe dava alívio. Porque ao desalento se somava um receio: e se ele, realmente, tivesse feito amor com Temporina? As memórias eram tão presentes e cheirosas, que ele já dava o dito pelo feito.
E qual o medo, então? — perguntei.
Você não entende? Se eu fiz, eu fiz todo desprotegido!
Qual o medo maior: ter contraído doença ou ter apanhado a maldição dos explodidos?
Quis fazer brincadeira, aligeirar o momento. Mas Risi não riu. O que eu pensava ser brincadeira surgiu como motivo de mais encargo. Não tinha ele arriscado? Quem sabe, um dia destes, ele se deflagraria como um qualquer capacete ex-azul?
Não pensei nisso.
Afinal, você acredita no feitiço?
Sei lá em que é que acredito.
O feitiço deve ser exclusivo para militares, fique descansado, Massimo Risi.
Para afastar as más nuvens, sugeri que ruássemos por ali, desmapeados e sem destino. O ministro já se havia retirado deixando instruções para o prosseguimento dos trabalhos. Massimo Risi era agora dono da investigação, único representante do mundo na nossa pequena vila.
Passeávamos sem destino cruzando as populosas esquinas, onde se acumulavam os vendedeiros. Do meio da gente, deu corpo o recepcionista da pensão. Parecia constrangido. Vinha a mando de Temporina: procurava o mano tonto dela.
Não o vimos — adiantou Massimo.
O hoteleiro chamou-me à parte. Murmurou, cauteloso:
Esse branco não me pode ouvir.
E é o quê?
É que o moço saiu de casa dizendo que vinha matar.
Vinha matar quem?
O italiano.
Matar Massimo? Razões de quê? Ciúmes, quem sabe. Medo que o europeu levasse sua irmã dali para longe. O certo é que o moço circulava desvairado pelas ruelas de Tizangara e mesmo já se metera pelos matos baldios. Temporina se preocupava: o moço não tinha experiência de andar nos caminhos deste mundo.
Sosseguei o recepcionista. Se eu visse o rapaz, o acompanharia a casa de Hortênsia, seu lugar materno.
Meu lugar também — acrescentou com timidez o encarregado da recepção. — Sou irmão afastado de Hortênsia.
Você é tio de Temporina?
Fica segredo.
Se falavam fingimentos. Em Tizangara quem não era irmão afastado? Mas eu aceitei. O homem me explicava como Temporina se afeiçoara à pensão. Ela estava em família. Ninguém era prisioneiro senão de seu próprio destino.
Alheio a tudo isto, Massimo Risi sacudiu o casaco de invisíveis poeiras. No instante, lhe caíram os botões. Caíram como? Certamente já estariam meio soltos. Riu-se lembrando as letras que haviam tombado da fachada da pensão. Se ajoelhou para apanhar os botões. Quando os tentava recuperar, porém, viu os dedos se empenarem, empedrecidos. Quanto mais esforço, mais desconseguia. Resolveu levantar rumo dali. Eu não entendia o que se passava dentro dele, o homem não articulava nem palavra. Primeiro, ainda pensou ser resultado da bebida. Que raio de bebidas lhe andavam a dar? Mas depois, já aterrado, viu que nem sequer se erguia. Nem desmanchava posição. Olhou para cima foi quando viu a velha-moça da pensão. Era uma visão de desacrer, nem de humana forma se semelhava. Massimo balbuciou:
Temporina?
A mulher lhe acariciou a cabeça. Foi essa visão que, depois, ele me disse que tivera. Mas a moça não agia com doçura. Puxou-lhe a testa e beijou-o como se lhe chupasse a alma pelos lábios. Depois, pegou na mão do italiano e guiou-a pelo seu ventre, como se a ensinasse a reconhecer uma parte que sempre fora de sua pertença.
Massimo Risi?
A voz de Chupanga despertou-o como se viesse de outro mundo.
Você está aí caído no chão... Não diga que desmaiou?!
O adjunto da administração chegara naquele momento e se intrigara ao ver a cena. Ajudámo-lo a levantar-se. O europeu andou uns passos para trás, outros para a frente. Quem sabe a si próprio se procurava. E com razão. Afinal, ele quase se antepassara, não lucrando para o susto. Olhou o céu, mas logo recuou os olhos: a luz ali era demasiado limpa. Chupanga, todo viscoso, se aprontou a conduzi-lo a uma sombra. — Sabe, eu queria ter uma conversa consigo, assim um pouco muito privada.
O italiano ainda estava zuezuado. Ali, no desamparo da lonjura, ele era uma pessoa muito atropelável. Disse que preferia regressar à pensão, mas Chupanga insistiu:
Desde que chegou que procuro falar consigo assim... um bocadinho muito à parte.
Olhou para mim de esquina. Sugeria que eu me afastasse. Mas Massimo rejeitou. Queria que eu ficasse por perto. Para traduzir, ironizou. Chupanga tinha um novelo na garganta, custou-lhe desatar a conversa:
É que eu sei muitas coisas. Mas um homem para falar necessita de combustível.
Combustível?
Chupanga me olhou, desta vez para implorar cumplicidade. Mantive-me impassível como se eu próprio não o entendesse. E voltou à carga, volteando o italiano:
Pense bem. Eu sei coisas muito valiosas. Mas necessitamos falar como homens que se entendem, está-me acompanhar?
Vou pensar no assunto — despachou o estrangeiro.
Mas, por favor, não comente com ninguém — e virando-se para mim acrescentou com desmodos: — Muito-muito você não fale com esse outro aí...
Quem? — Com seu pai, o velho Sulplício. Eu sabia: meu velho existia fora dos agrados governamentais. Mas o povo encontrava-lhe respeito, razão dos antepassados que ele dispunha na eternidade. No dizer de Chupanga, meu pai vivia em nação de bicho, era um tipo levado da broca, todo artimanhoso. Da primeira vez que tentara falar-lhe, o administrador sofrera o peso do ridículo. Ele ali, todo modos e maneiras, licenças para cima, desculpas para baixo. E o outro nada, trancado na testa, lambendo a própria língua. Isto é: não falando português, mas a língua local. O velho Sulplício não tinha respeito por nenhuma presença. Até que lhe deram a lição.
O italiano levantou-se, desejava regressar a pé para a pensão. Mas o burocrata negou. Iriam de carro que era mais seguro. Depois, ninguém respeita quem não chega viaturizado. Chupanga apontou, ostentoso, o carro.
É um turbo-diesel bastante acavalado. Todo ele tem ar-condicionado, à frente e atrás.
Entramos na viatura. Chupanga ligou o ar-condicionado e abriu uma lata de cerveja. Ofereceu-nos bebida. Só eu aceitei. No caminho, o italiano rompeu o silêncio:
Estou preocupado com esta situação.
Eu também — disse Chupanga. — Mas já mandei vir uma moldura nova, toda inteira, lá da capital.
Chegados à pensão, o italiano saiu do carro sem se despedir. Segui-o e notei que o seu modo de caminhar já era mais ligeiro, ele já se mexia como se o corpo fosse dele. Os dois nos sentamos no bar. Falamos, sem outro motivo que não fosse encher o tempo. Eu lhe disse, a certa altura:
Sabe, Massimo, tenho pena de si, tão só. Eu nunca poderia ficar tão absolutamente sozinho.
Por quê?
Mesmo se me arrancassem daqui, se me levassem para Itália, eu não passava assim tão mal. Porque eu sei viver no seu mundo.
E eu não sei viver no seu mundo?
Não, não sabe.
Isso não me interessa. Eu só quero é cumprir a minha missão. Você não sabe como isto é importante para mim, para a minha carreira. E para Moçambique.
Tratou de me elucidar: a minha segurança estava nos outros, a dele estava na sua carreira. Eu lhe senti pena. Porque ele procurava como um cego. Não seguia o cuidado: a verdade tem perna comprida e pisa por caminhos mentirosos. Para agravar, em Tizangara tudo ocorria de passagem. Quem aqui vinha nunca era para ficar. Por isso, quando chegaram, esses soldados das Nações Unidas foram chamados de gafanhotos.
Outra coisa: o senhor pergunta de mais. A verdade foge de muita pergunta.
Como posso ter respostas se não pergunto?
Sabe o que devia fazer? Contar a sua estória. Nós esperamos que vocês, brancos, nos contem vossas estórias.
Uma estória? Eu não sei nenhuma estória.
Sabe, tem que saber. Até os mortos sabem. Contam estórias pela boca dos vivos.
A propósito, eu ando por aí perguntando aos outros. Mas ainda não perguntei a si: você estava aqui quando começaram esses estrondos?
Estava.
Então você acompanhou tudo. Me conte. Me conte tudo desde que começaram os rebentamentos. Espere. Espere que eu quero gravar. Não se importa?
Mia Couto, in O último voo do flamingo

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