Capítulo
A
1
— Então Noé disse a seus filhos Jafé, Sem e Cam: — “Vamos
sair da arca, segundo a vontade do Senhor, nós, e nossas mulheres, e
todos os animais. A arca tem de parar no cabeço de uma montanha;
desceremos a ela.
2
— “Porque o Senhor cumpriu a sua promessa, quando me disse:
Resolvi dar cabo de toda a carne; o mal domina a terra, quero fazer
perecer os homens. Faze uma arca de madeira; entra nela tu, tua
mulher e teus filhos.
3
— “E as mulheres de teus filhos, e um casal de todos os animais.
4
— “Agora, pois, se cumpriu a promessa do Senhor, e todos os
homens pereceram, e fecharam-se as cataratas do céu; tornaremos a
descer à terra, e a viver no seio da paz e da concórdia.”
5
— Isto disse Noé, e os filhos de Noé muito se alegraram de ouvir
as palavras de seu pai; e Noé os deixou sós, retirando-se a uma das
câmaras da arca.
6
— Então Jafé levantou a voz e disse: — “Aprazível vida vai
ser a nossa. A figueira nos dará o fruto, a ovelha a lã, a vaca o
leite, o sol a claridade e a noite a tenda.
7
— “Porquanto seremos únicos na terra, e toda a terra será
nossa, e ninguém perturbará a paz de uma família, poupada do
castigo que feriu a todos os homens.
8
— “Para todo o sempre.” Então Sem, ouvindo falar o irmão,
disse: — “Tenho uma ideia.” Ao que Jafé e Cam responderam: —
“Vejamos a tua ideia, Sem.”
9
— E Sem falou a voz de seu coração, dizendo: — “Meu pai tem a
sua família; cada um de nós tem a sua família; a terra é de
sobra; podíamos viver em tendas separadas. Cada um de nós fará o
que lhe parecer melhor: e plantará, caçará, ou lavrará a madeira,
ou fiará o linho.”
10
— E respondeu Jafé: — “Acho bem lembrada a ideia de Sem;
podemos viver em tendas separadas. A arca vai descer ao cabeço de
uma montanha; meu pai e Cam descerão para o lado do nascente; eu e
Sem para o lado do poente. Sem ocupará duzentos côvados de terra,
eu outros duzentos.”
11
— Mas dizendo Sem: — “Acho pouco duzentos côvados” —,
retorquiu Jafé: “Pois sejam quinhentos cada um. Entre a minha
terra e a tua haverá um rio, que as divida no meio, para se não
confundir a propriedade. Eu fico na margem esquerda e tu na margem
direita;
12
— “E a minha terra se chamará a terra de Jafé, e a tua se
chamará a terra de Sem; e iremos às tendas um do outro, e
partiremos o pão da alegria e da concórdia.”
13
— E tendo Sem aprovado a divisão, perguntou a Jafé: “Mas o rio?
a quem pertencerá a água do rio, a corrente?
14
— “Porque nós possuímos as margens, e não estatuímos nada a
respeito da corrente.” E respondeu Jafé, que podiam pescar de um e
outro lado; mas, divergindo o irmão, propôs dividir o rio em duas
partes, fincando um pau no meio. Jafé, porém, disse que a corrente
levaria o pau.
15
— E tendo Jafé respondido assim, acudiu o irmão: — “Pois que
te não serve o pau, fico eu com o rio, e as duas margens; e para que
não haja conflito, podes levantar um muro, dez ou doze côvados,
para lá da tua margem antiga.
16
— “E se com isto perdes alguma coisa, nem é grande a diferença,
nem deixa de ser acertado, para que nunca jamais se turbe a concórdia
entre nós, segundo é a vontade do Senhor.”
17
— Jafé porém replicou: — “Vai bugiar! Com que direito me
tiras a margem, que é minha, e me roubas um pedaço de terra?
Porventura és melhor do que eu,
18
— “Ou mais belo, ou mais querido de meu pai? Que direito tens de
violar assim tão escandalosamente a propriedade alheia?
19
— “Pois agora te digo que o rio ficará do meu lado, com ambas as
margens, e que se te atreveres a entrar na minha terra, matar-te-ei
como Caim matou a seu irmão.”
20
— Ouvindo isto, Cam atemorizou-se muito, e começou a aquietar os
dois irmãos,
21
— Os quais tinham os olhos do tamanho de figos e cor de brasa, e
olhavam-se cheios de cólera e desprezo.
22
— A arca, porém, boiava sobre as águas do abismo.
Capítulo
B
1
— Ora, Jafé, tendo curtido a cólera, começou a espumar pela
boca, e Cam falou-lhe palavras de brandura,
2
— Dizendo: — “Vejamos um meio de conciliar tudo; vou chamar tua
mulher e a mulher de Sem.”
3
— Um e outro, porém, recusaram dizendo que o caso era de direito e
não de persuasão.
4
— E Sem propôs a Jafé que compensasse os dez côvados perdidos,
medindo outros tantos nos fundos da terra dele. Mas Jafé respondeu:
5
— “Por que me não mandas logo para os confins do mundo? Já te
não contentas com quinhentos côvados; queres quinhentos e dez, e eu
que fique com quatrocentos e noventa.
6
— “Tu não tens sentimentos morais? não sabes o que é justiça?
não vês que me esbulhas descaradamente? e não percebes que eu
saberei defender o que é meu, ainda com risco de vida?
7
— “E que, se é preciso correr sangue, o sangue há de correr já
e já,
8
— “Para te castigar a soberba e lavar a tua iniquidade?”
9
— Então Sem avançou para Jafé; mas Cam interpôs-se, pondo uma
das mãos no peito de cada um;
10
— Enquanto o lobo e o cordeiro, que durante os dias do dilúvio,
tinham vivido na mais doce concórdia, ouvindo o rumor das vozes,
vieram espreitar a briga dos dois irmãos, e começaram a vigiar-se
um ao outro.
11
— E disse Cam: — “Ora, pois, tenho uma ideia maravilhosa, que
há de acomodar tudo;
12
— “A qual me é inspirada pelo amor, que tenho a meus irmãos.
Sacrificarei pois a terra que me couber ao lado de meu pai, e ficarei
com o rio e as duas margens, dando-me vós uns vinte côvados cada
um.”
13
— E Sem e Jafé riram com desprezo e sarcasmo, dizendo: — “Vai
plantar tâmaras! Guarda a tua ideia para os dias da velhice.” E
puxaram as orelhas e o nariz de Cam; e Jafé, metendo dois dedos na
boca, imitou o silvo da serpente, em ar de surriada.
14
— Ora, Cam, envergonhado e irritado, espalmou a mão dizendo: —
“Deixa estar!” e foi dali ter com o pai e as mulheres dos dois
irmãos.
15
— Jafé porém disse a Sem: — “Agora que estamos sós, vamos
decidir este grave caso, ou seja de língua ou de punho. Ou tu me
cedes as duas margens, ou eu te quebro uma costela.”
16
— Dizendo isto, Jafé ameaçou a Sem com os punhos fechados,
enquanto Sem, derreando o corpo, disse com voz irada: “Não te cedo
nada, gatuno.”
17
— Ao que Jafé retorquiu irado: “Gatuno és tu!”
18
— Isto dito, avançaram um para o outro e atracaram-se. Jafé tinha
o braço rijo e adestrado; Sem era forte na resistência. Então
Jafé, segurando o irmão pela cinta, apertou-o fortemente, bradando:
“De quem é o rio?”
19
— E respondendo Sem: — “É meu!” Jafé fez um gesto para
derrubá-lo; mas Sem, que era forte, sacudiu o corpo e atirou o irmão
para longe; Jafé, porém, espumando de cólera, tornou a apertar o
irmão, e os dois lutaram braço a braço,
20
— Suando e bufando como touros.
21
— Na luta, caíram e rolaram, esmurrando-se um ao outro; o sangue
saía dos narizes, dos beiços, das faces; ora vencia Jafé,
22
— Ora vencia Sem; porque a raiva animava-os igualmente, e eles
lutavam com as mãos, os pés, os dentes e as unhas; e a arca
estremecia como se de novo se houvessem aberto as cataratas do céu.
23
— Então as vozes e brados chegaram aos ouvidos de Noé, ao mesmo
tempo que seu filho Cam, que lhe apareceu clamando: “Meu pai, meu
pai, se de Caim se tomará vingança sete vezes, e de Lamech setenta
vezes sete, o que será de Jafé e Sem?”
24
— E pedindo Noé que explicasse o dito, Cam referiu a discórdia
dos dois irmãos, e a ira que os animava, e disse: — “Correi a
aquietá-los.” Noé disse: — “Vamos.”
25
— A arca, porém, boiava sobre as águas do abismo.
Capítulo
C
1
— Eis aqui chegou Noé ao lugar onde lutavam os dois filhos,
2
— E achou-os ainda agarrados um ao outro, e Sem debaixo do joelho
de Jafé, que com o punho cerrado lhe batia na cara, a qual estava
roxa e sangrenta.
3
— Entretanto, Sem, alçando as mãos, conseguiu apertar o pescoço
do irmão, e este começou a bradar: “Larga-me, larga-me!”
4
— Ouvindo os brados, as mulheres de Jafé e Sem acudiram também ao
lugar da luta, e, vendo-os assim, entraram a soluçar e a dizer: “O
que será de nós? A maldição caiu sobre nós e nossos maridos.”
5
— Noé, porém, lhes disse: “Calai-vos, mulheres de meus filhos,
eu verei de que se trata, e ordenarei o que for justo.” E
caminhando para os dois combatentes,
6
— Bradou: “Cessai a briga. Eu, Noé, vosso pai, o ordeno e
mando.” E ouvindo os dois irmãos o pai, detiveram-se subitamente,
e ficaram longo tempo atalhados e mudos, não se levantando nenhum
deles.
7
— Noé continuou: “Erguei-vos, homens indignos da salvação e
merecedores do castigo que feriu os outros homens.”
8
— Jafé e Sem ergueram-se. Ambos tinham feridos o rosto, o pescoço
e as mãos, e as roupas salpicadas de sangue, porque tinham lutado
com unhas e dentes, instigados de ódio mortal.
9
— O chão também estava alagado de sangue, e as sandálias de um e
outro, e os cabelos de um e outro,
10
— Como se o pecado os quisera marcar com o selo da iniquidade.
11
— As duas mulheres, porém, chegaram-se a eles, chorando e
acariciando-os, e via-se-lhes a dor do coração. Jafé e Sem não
atendiam a nada, e estavam com os olhos no chão, medrosos de encarar
seu pai.
12
— O qual disse: “Ora, pois, quero saber o motivo da briga.”
13
— Esta palavra acendeu o ódio no coração de ambos. Jafé, porém,
foi o primeiro que falou e disse:
14
— “Sem invadiu a minha terra, a terra que eu havia escolhido para
levantar a minha tenda, quando as águas houverem desaparecido e a
arca descer, segundo a promessa do Senhor;
15
— “E eu, que não tolero o esbulho, disse a meu irmão: “Não
te contentas com quinhentos côvados e queres mais dez?” E ele me
respondeu: “Quero mais dez e as duas margens do rio que há de
dividir a minha terra da tua terra.”
16
— Noé, ouvindo o filho, tinha os olhos em Sem; e acabando Jafé,
perguntou ao irmão: “Que respondes?”
17
— E Sem disse: — “Jafé mente, porque eu só lhe tomei os dez
côvados de terra, depois que ele recusou dividir o rio em duas
partes; e propondo-lhe ficar com as duas margens, ainda consenti que
ele medisse outros dez côvados nos fundos das terras dele,
18
— “Para compensar o que perdia; mas a iniquidade de Caim falou
nele, e ele me feriu a cabeça, a cara e as mãos.”
19
— E Jafé interrompeu-o dizendo: “Porventura não me feriste
também? Não estou ensanguentado como tu? Olha a minha cara e o meu
pescoço; olha as minhas faces, que rasgaste com as tuas unhas de
tigre.”
20
— Indo Noé falar, notou que os dois filhos de novo pareciam
desafiar-se com os olhos. Então disse: “Ouvi!” Mas os dois
irmãos, cegos de raiva, outra vez se engalfinharam, bradando: —
“De quem é o rio?” — “O rio é meu.”
21
— E só a muito custo puderam Noé, Cam e as mulheres de Sem e
Jafé, conter os dois combatentes, cujo sangue entrou a jorrar em
grande cópia.
22
— Noé, porém, alçando a voz, bradou: — “Maldito seja o que
me não obedecer. Ele será maldito, não sete vezes, não setenta
vezes sete, mas setecentas vezes setenta.
23
— “Ora, pois, vos digo que, antes de descer a arca, não quero
nenhum ajuste a respeito do lugar em que levantareis as tendas.”
24
— Depois ficou meditabundo.
25
— E alçando os olhos ao céu, porque a portinhola do teto estava
levantada, bradou com tristeza:
26
— “Eles ainda não possuem a terra e já estão brigando por
causa dos limites. O que será quando vierem a Turquia e a Rússia?”
27
— E nenhum dos filhos de Noé pôde entender esta palavra de seu
pai.
28
— A arca, porém, continuava a boiar sobre as águas do abismo.
Machado
de Assis, in Papéis avulsos
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