terça-feira, 11 de julho de 2017

Leona, ou uma mudança de perspectiva

Quando se arruma a casa, também se deve encontrar uma mulher. A amiga de Ulrich, naqueles tempos, chamava-se Leontina e era cantora num pequeno teatro de variedades; era grande, esbelta e cheia de corpo, de uma apatia irritante; ele a chamava Leona.
Ela despertara seu interesse pelo negrume úmido dos olhos, uma expressão dolorida e apaixonada do belo rosto longo e regular, e pelas canções sentimentais que cantava em lugar de canções lascivas. Todas aquelas cançõezinhas antiquadas falavam de amor, sofrimento, fidelidade, abandono, rumores de florestas e cintilações de trutas. Leona colocava-se, alta e solitária, no pequeno palco, cantando com voz de uma dona de casa pacientemente em direção ao público; e quando deixava escapar pequenas ousadias morais, pareciam mais fantasmagóricas ainda, porque a moça acompanhava emoções trágicas ou travessas com os mesmos gestos penosamente soletrados. Ulrich recordou imediatamente retratos antigos ou belas mulheres de velhas revistas para famílias; observando o rosto daquela mulher percebeu nele uma porção de pequenos traços que não podiam ser reais, mas que o caracterizavam. Naturalmente todas as épocas têm todas variedades de rostos; mas a moda destaca sempre um deles, fazendo-o modelo de felicidade e beleza, e os demais tentam imitá-lo; até as feias o conseguem com ajuda de roupa e penteado, só as que nasceram para coisas especiais não o conseguem nunca — nelas manifesta-se sem concessões o ideal de beleza banido e aristocrático de tempos passados. Esses rostos andam como cadáveres de antigos prazeres sensuais na grande ilusão da troca amorosa; e os homens que, boquiabertos, fitavam o tédio imenso das canções de Leontina, inconscientes disso fremiam as narinas com emoções bem diferentes do que as que lhes inspiravam as atrevidas cantoras com penteados de dançarina de tango. Ulrich decidiu chamá-la Leona, e possuí-la lhe pareceu mais desejável do que possuir um leão empalhado pelo taxidermista.
Mas, iniciada a sua relação, Leona revelou outra característica: era incrivelmente comilona, vício que há muito saíra de moda. Nascera do desejo reprimido da criança pobre de comer guloseimas, mas assumira a força de um ideal que finalmente rompe as grades e domina a personalidade. O pai dela parecia ter sido um honrado pequeno- burguês, batia-lhe sempre que a via com admiradores; mas Leona saía com rapazes apenas porque adorava sentar-se no terraço de uma confeitaria comendo sorvete enquanto observava dignamente os transeuntes. Não se poderia dizer que não fosse sensual, mas, como em todas as coisas, também nisso era preguiçosa e detestava atividade. Qualquer excitação em seu avantajado corpo precisava de muito tempo até chegar ao cérebro, e às vezes no meio do dia seus olhos começavam a se enevoar sem motivo, enquanto à noite tinham-se fixado imóveis num ponto do teto, como se observassem uma mosca ali pousada. Assim, também podia começar a rir, em pleno silêncio, de uma anedota que só então entendia embora a tivesse escutado dias atrás, quieta, sem a compreender. Quando não tinha nenhum motivo para fazer o contrário, era portanto muito decente. Nunca contara como chegara àquela profissão. Aparentemente, tinha esquecido. Via-se apenas que considerava a atividade de cantora parte necessária de sua vida, ligando-a a tudo o que de grandioso jamais ouvira sobre arte e artistas, de modo que lhe parecia uma atividade correta, edificante e nobre, postar-se cada noite num pequeno palco imerso em fumaça de charutos, e apresentar canções que nunca deixavam de emocionar os outros. Naturalmente, como é necessário para temperar a decência, não recuava diante de uma indecência eventual, mas estava firmemente convencida de que a prima-dona da Ópera Imperial fazia a mesma coisa.
Na verdade, se teimarmos em chamar prostituição alguém entregar-se por dinheiro, não, como é comum, com toda a sua pessoa, mas apenas o seu corpo, então de vez em quando Leona se prostituía. Mas quem durante nove anos, como ela fazia desde os dezesseis, conhece a mesquinharia dos ordenados que se pagam por dia nos cabarés vagabundos, e leva em consideração o preço das roupas, os descontos, a avareza e arbitrariedade dos proprietários, a porcentagem sobre a comida e bebida de clientes animados e sobre as contas dos quartos do hotel vizinho, quem tem de lidar com tudo isso diariamente, brigar e calcular tudo comercialmente, sabe que aquilo a que os leigos chamam devassidão é uma profissão plena de lógica; objetividade e regulamentos. Exatamente a prostituição é um fenômeno no qual faz grande diferença se o encaramos de cima ou de baixo.
Mas embora Leona tivesse uma concepção absolutamente objetiva da questão sexual, não era desprovida de romantismo. Apenas todo o excesso, vaidade, desperdício, os sentimentos de orgulho, inveja, sensualidade, ambição, entrega, em suma, os instintos da personalidade e da ascensão social, se tinham nela ligado, por um capricho da natureza, não ao coração, mas ao tractus abdominalis, aos processos da alimentação; com os quais, aliás, em tempos antigos estavam regularmente ligados, o que hoje ainda se observa nos povos primitivos ou nos camponeses glutões que conseguem expressar a nobreza, e tudo o que distingue o ser humano, numa refeição festiva na qual se come em excesso, com toda a solenidade e todos os fenômenos concomitantes. Nas mesas do cabaré de segunda categoria, Leona cumpria o seu dever; mas sonhava com um cavalheiro que lhe permitisse, através de uma relação que durasse o tempo de seu contrato, sentar-se em fina postura diante do fino cardápio de um restaurante fino. Então teria gostado de comer de uma só vez de todos os pratos, e provocava-lhe uma satisfação dolorida e contraditória poder mostrar, ao mesmo tempo, que sabia escolher os pratos, e compor um menu sofisticado. Só nas sobremesas podia soltar a fantasia, e habitualmente, numa sequência inversa, estas se tornavam um lauto segundo jantar. Com café preto e bebidas Leona recuperava sua capacidade de comer e excitava-se com surpresas, até saciar sua paixão. Então seu corpo quase estourava de coisas finas. Ela olhava em torno, indolente e radiante, e embora Quando dizia Polmone à la Torlogna ou Maçãs à la Melville, pronunciava isso como outra pessoa diria, em tom calculadamente casual, que falara com o príncipe ou lorde do mesmo nome.
Como aparecer em público com Leona não fosse exatamente do agrado de Ulrich, ele habitualmente a alimentava em sua casa, onde ela poderia comer em honra das galhadas de cervo e dos móveis de estilo. Mas assim, Leona sentia-se frustrada em seu prazer social, e quando o homem sem qualidades a excitava com os mais estranhos pratos que um cozinheiro consegue produzir, levando-a a solitários excessos, ela se sentia usada, como uma mulher que sabe que não é amada por suas qualidades espirituais. Era bonita, era uma cantora, não precisava se esconder, e todas as noites era objeto dos desejos de algumas dúzias de homens que lhe teriam dado razão. Mas aquele homem, embora quisesse ficar sozinho com ela, nem ao menos dizia: “Santo Deus, Leona, a tua b... me deixa louco!”, lambendo os bigodes de apetite só de a contemplar, como habitualmente faziam os cavalheiros. Leona o desprezava um pouco, mas naturalmente lhe era fiel, e Ulrich sabia disso. Aliás, sabia muito bem o que fazer em companhia de Leona, mas passara há muito a época em que teria dito uma coisa daquelas e usara bigode. E quando não se consegue repetir o que se fazia em outros tempos, por tolo que seja, é como perder o uso da mão ou da perna.
Os olhos dele tremeluziam ao ver sua amiga depois que comida e bebida lhe tinham subido à cabeça. Podia-se separar cuidadosamente a beleza dela da pessoa dela. Era a beleza da duquesa que o Ekkerhard de Scheffel carregara sobre a soleira do convento, a beleza da castelã com o falcão pousado na luva, a beleza da lendária imperatriz Elisabete com sua pesada coroa de cabelos, uma delícia para pessoas já mortas. Para ser mais exato, ela também lembrava a divina Juno, mas não uma Juno eterna e permanente, e sim aquilo que num tempo passado ou quase se pensava de Juno. Assim, o sonho do ser fora emborcado apenas frouxamente sobre a matéria. Mas Leona sabia que um convite refinado merece recompensa, mesmo que o anfitrião nada espere, e que não devia apenas deixar-se olhar daquele jeito; por isso, assim que conseguia fazê-lo novamente, punha-se de pé e começava a cantar sem emoção mas com voz forte.
Para seu amigo, noites como aquela pareciam folhas arrancadas, animadas por toda a sorte de ideias e fantasias, mas mumificadas como tudo que é retirado de um contexto; e cheias daquela tirania do que se fixou eternamente e que constitui o fantasmagórico encanto dos quadros vivos, como se tivessem dado um sonífero à vida, e agora ela estivesse parada ali, hirta e cheia de alusões, com contornos nítidos, mas monstruosamente desprovida de sentido no quadro geral.
Robert Musil, in O homem sem qualidades

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