Lázaro
dobrou o tronco para ir ao fundo do bolso e retirar algo que a Zero
pareceu um pequeno rádio de pilhas.
— Um
telemóvel, meus amigos.
Zero
e Mwadia permaneceram impassíveis enquanto o outro agitava o
minúsculo telefone como uma bandeira vitoriosa.
— Eu
já estou no futuro. Quando chegar aqui a rede, já posso ser
contactado para serviços internacionais. Entendem, meus amigos?
— Entre
nós dois quem percebe é Mwadia.
Ficaram
a olhar a tarde, calados. Como se o que esperassem fosse o próprio
tempo. Madzero sabia: era falta de maneiras expor logo a sua aflição.
Até porque Lázaro sempre dizia que não resolvia problemas. Ele
dissolvia os problemas, que é uma forma superior de prestar ajuda.
— Mas,
então, compadre: ficou-lhe a doer um sonho?
— O
pior, Ba Lázaro, o pior não foi o sonho. O despertar é que foi um
pesadelo.
—
Explique-se, meu amigo, detalhe-se.
—
Acordei todo cansado, ombro derreado.
E as mãos, as mãos eram um incêndio.
O
curandeiro ergueu-se com pesos que lhe vinham não do corpo mas da
tardia hora da consulta. Postou-se rente ao queixoso e soprou como se
trombeteasse o ar, semelhando o vozear de um paquiderme. Pediu a Zero
que estendesse os braços. Com inesperado vigor, repuxou a manga da
camisa para lhe descobrir o ombro magro. Depois, o curandeiro fungou
ruidosamente como se a alma lhe escapasse pelas narinas. Debruçou-se
sobre o pastor e farejou-lhe a omoplata. Num ápice, desviou o olhar
e passou a mão pelo rosto, limpando invisíveis transpirações. Em
seguida, cuspiu repetidas vezes, parecendo expulsar a alma aos
retalhos.
— O
que se passa, Ba Lázaro?, inquiriu Zero com o susto atravessado
na garganta.
— Você
andou carregando um peso toda a noite.
Madzero
estranhou, sobrancelhas em arco. O nyanga adivinhava a queda e o
enterro da estrela? A medo, o pastor perguntou:
— Peso?
Que peso?
— Uma
mulher.
— Uma
mulher?
— Sim,
meu amigo, uma mulher. E lhe digo mais: uma mulher muito quente.
— Isso
não pode ser. Desculpe, mas não pode. Eu durmo sozinho. Mais do que
sozinho, eu durmo com minha esposa.
— Veja,
então! Veja essa marca! E lhe
apontou um espelho para que ele espreitasse a sua própria omoplata.
— Marca
de quê?
— Não
está a ver? Isso é a marca de um seio. Um seio de mulher.
Seio
deixa marca? Nem objetou, por respeito. Lázaro Vivo adivinhou-lhe a
descrença. E voltou a levantar-lhe a manga, apontando para um sulco
redondo sobre a pele.
— Isso,
compadre, é a pegada de um seio. Mas também lhe digo: essa mama não
é feita de carne.
Lázaro
não tinha mais a dizer. Com um gesto vazio ordenou o fim da
consulta. Madzero retirou-se confuso e abatido. O curandeiro
desvariava. O burriqueiro só conhecia as belas e carnudas mamas de
Mwadia. Era evidente que a marca tinha sido produzida pela estrela
decadente que ele transportara e enterrara. Quem pode confundir
mulher e estrela?
À
despedida, o curandeiro enfrentou Mwadia que permanecia calada, olhos
no chão.
— E
você, Mwadia, você não sonha?
— Eu?
Ora, compadre Lázaro, eu nunca lembro o que sonho.
—
Cuidado, minha filha, muita cautela:
quem não vê os seus sonhos é porque está sonhando aquilo que está
vendo.
— Não
diga isso que me assusta.
—
Espere um pouco, disse
Lázaro, quero-lhe mostrar uma coisa.
Lázaro
Vivo inclinou-se sobre a areia e arrancou uma planta pela raiz.
Levantou a planta, virou-a ao contrário e pediu a Mwadia que
contemplasse o recorte das raízes de encontro ao céu.
—
Espreite bem: o que lhe parece essa
raiz?
—
Parece uma árvore, avançou
com timidez.
Ele
sorriu, confiante. Era a resposta que esperava. Sacudiu a raiz,
espalhando areia úmida.
— Isto
é você. Parece uma raiz. Mas é uma árvore que vive enterrada.
Mwadia
despediu-se, cumprindo a vénia respeitosa. Depois, correu para
acompanhar o marido que, entretanto, ganhara caminho. As enigmáticas
palavras do curandeiro ecoavam na sua cabeça. Rapidamente decidiu
esquecê-las. Assim que contornaram o cabeço rochoso ela perguntou
ao marido:
— Não
escutei tudo o que falaram: afinal, o curandeiro autorizou?
— Hein?
—
Pergunto se Lázaro autorizou a nossa
viagem à floresta.
O
burriqueiro acenou afirmativamente. Depois, apressou o passo para que
todos vissem que ele caminhava à frente da mulher, como era devido a
um homem-macho. Mas logo ele se riu. Não havia ali ninguém para os
ver passar. E o riso lhe foi murchando numa linha entristecida.
—
Marido, me diga uma coisa: você não
inventou toda esta história da estrela só para me fazer esquecer da
sua promessa...
— Da
promessa?
— Há
quantos anos você anda a prometer que me vai tirar desta porcaria
desta vida?
— Mas,
Mwadia, você não desiste dessa ideia?
— Eu
já não tenho motivo de viver, Zero. E você me prometeu que me
matava de boa maneira...
— Eu
ainda estou a pensar numa maneira.
— Ainda
estou a pensar, ainda estou a pensar... pois pense rápido, que um
dia ainda me acontece como essa estrela, e me despedaço dos céus.
Longe
da família, sem filhos, sem chuva, naquele canto para além do
mundo, Mwadia não era nem a árvore nem a raiz de que falara Lázaro.
Ela era um arbusto definhado e seco. Toda a morte tem o seu quê de
suicídio. Mwadia, porém, já não se considerava vivente. Por isso,
para deixar de viver, já nem carecia morrer.
Mia
Couto, in O outro pé da sereia
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