domingo, 23 de julho de 2017

Já nem carecia morrer

Lázaro dobrou o tronco para ir ao fundo do bolso e retirar algo que a Zero pareceu um pequeno rádio de pilhas.
Um telemóvel, meus amigos.
Zero e Mwadia permaneceram impassíveis enquanto o outro agitava o minúsculo telefone como uma bandeira vitoriosa.
Eu já estou no futuro. Quando chegar aqui a rede, já posso ser contactado para serviços internacionais. Entendem, meus amigos?
Entre nós dois quem percebe é Mwadia.
Ficaram a olhar a tarde, calados. Como se o que esperassem fosse o próprio tempo. Madzero sabia: era falta de maneiras expor logo a sua aflição. Até porque Lázaro sempre dizia que não resolvia problemas. Ele dissolvia os problemas, que é uma forma superior de prestar ajuda.
Mas, então, compadre: ficou-lhe a doer um sonho?
O pior, Ba Lázaro, o pior não foi o sonho. O despertar é que foi um pesadelo.
Explique-se, meu amigo, detalhe-se.
Acordei todo cansado, ombro derreado. E as mãos, as mãos eram um incêndio.
O curandeiro ergueu-se com pesos que lhe vinham não do corpo mas da tardia hora da consulta. Postou-se rente ao queixoso e soprou como se trombeteasse o ar, semelhando o vozear de um paquiderme. Pediu a Zero que estendesse os braços. Com inesperado vigor, repuxou a manga da camisa para lhe descobrir o ombro magro. Depois, o curandeiro fungou ruidosamente como se a alma lhe escapasse pelas narinas. Debruçou-se sobre o pastor e farejou-lhe a omoplata. Num ápice, desviou o olhar e passou a mão pelo rosto, limpando invisíveis transpirações. Em seguida, cuspiu repetidas vezes, parecendo expulsar a alma aos retalhos.
O que se passa, Ba Lázaro?, inquiriu Zero com o susto atravessado na garganta.
Você andou carregando um peso toda a noite.
Madzero estranhou, sobrancelhas em arco. O nyanga adivinhava a queda e o enterro da estrela? A medo, o pastor perguntou:
Peso? Que peso?
Uma mulher.
Uma mulher?
Sim, meu amigo, uma mulher. E lhe digo mais: uma mulher muito quente.
Isso não pode ser. Desculpe, mas não pode. Eu durmo sozinho. Mais do que sozinho, eu durmo com minha esposa.
Veja, então! Veja essa marca! E lhe apontou um espelho para que ele espreitasse a sua própria omoplata.
Marca de quê?
Não está a ver? Isso é a marca de um seio. Um seio de mulher.
Seio deixa marca? Nem objetou, por respeito. Lázaro Vivo adivinhou-lhe a descrença. E voltou a levantar-lhe a manga, apontando para um sulco redondo sobre a pele.
Isso, compadre, é a pegada de um seio. Mas também lhe digo: essa mama não é feita de carne.
Lázaro não tinha mais a dizer. Com um gesto vazio ordenou o fim da consulta. Madzero retirou-se confuso e abatido. O curandeiro desvariava. O burriqueiro só conhecia as belas e carnudas mamas de Mwadia. Era evidente que a marca tinha sido produzida pela estrela decadente que ele transportara e enterrara. Quem pode confundir mulher e estrela?
À despedida, o curandeiro enfrentou Mwadia que permanecia calada, olhos no chão.
E você, Mwadia, você não sonha?
Eu? Ora, compadre Lázaro, eu nunca lembro o que sonho.
Cuidado, minha filha, muita cautela: quem não vê os seus sonhos é porque está sonhando aquilo que está vendo.
Não diga isso que me assusta.
Espere um pouco, disse Lázaro, quero-lhe mostrar uma coisa.
Lázaro Vivo inclinou-se sobre a areia e arrancou uma planta pela raiz. Levantou a planta, virou-a ao contrário e pediu a Mwadia que contemplasse o recorte das raízes de encontro ao céu.
Espreite bem: o que lhe parece essa raiz?
Parece uma árvore, avançou com timidez.
Ele sorriu, confiante. Era a resposta que esperava. Sacudiu a raiz, espalhando areia úmida.
Isto é você. Parece uma raiz. Mas é uma árvore que vive enterrada.
Mwadia despediu-se, cumprindo a vénia respeitosa. Depois, correu para acompanhar o marido que, entretanto, ganhara caminho. As enigmáticas palavras do curandeiro ecoavam na sua cabeça. Rapidamente decidiu esquecê-las. Assim que contornaram o cabeço rochoso ela perguntou ao marido:
Não escutei tudo o que falaram: afinal, o curandeiro autorizou?
Hein?
Pergunto se Lázaro autorizou a nossa viagem à floresta.
O burriqueiro acenou afirmativamente. Depois, apressou o passo para que todos vissem que ele caminhava à frente da mulher, como era devido a um homem-macho. Mas logo ele se riu. Não havia ali ninguém para os ver passar. E o riso lhe foi murchando numa linha entristecida.
Marido, me diga uma coisa: você não inventou toda esta história da estrela só para me fazer esquecer da sua promessa...
Da promessa?
Há quantos anos você anda a prometer que me vai tirar desta porcaria desta vida?
Mas, Mwadia, você não desiste dessa ideia?
Eu já não tenho motivo de viver, Zero. E você me prometeu que me matava de boa maneira...
Eu ainda estou a pensar numa maneira.
Ainda estou a pensar, ainda estou a pensar... pois pense rápido, que um dia ainda me acontece como essa estrela, e me despedaço dos céus.
Longe da família, sem filhos, sem chuva, naquele canto para além do mundo, Mwadia não era nem a árvore nem a raiz de que falara Lázaro. Ela era um arbusto definhado e seco. Toda a morte tem o seu quê de suicídio. Mwadia, porém, já não se considerava vivente. Por isso, para deixar de viver, já nem carecia morrer.
Mia Couto, in O outro pé da sereia

Nenhum comentário:

Postar um comentário