segunda-feira, 10 de julho de 2017

Índios


Era uma reunião de amigos, todos já no lado mais preguiçoso dos 40 anos, e já tinham falado de tudo. Do governo, da seleção, da vida em geral (tudo contra). Foi quando um deles disse:
- Sabe do que eu tenho saudade?
Ninguém disse “Do quê?”, porque não precisava. Ele continuou:
- De filme de pirata.
Os outros suspiraram. Era verdade. Não faziam mais filmes de pirata. Mais uma prova de que a vida em geral perdera muito com a passagem dos anos.
- E filme com escadaria?
Desta vez não houve consenso. Como, filme com escadaria?
- Lembra como as pessoas caíam na escada, antigamente? Volta e meia rolava alguém pela escada, e morria.
- Ou então, se era mulher, perdia o filho.
- Exatamente.
Todos suspiraram outra vez. Ninguém mais rolava pela escada, nos filmes. Aliás, as escadas agora é que eram rolantes.
Um deles, só para provar a inveja retroativa do grupo, revelou que certa vez vira um filme de pirata com escadaria. Se passava em Maracaibo.
- Rolava alguém pela escada?
- Uma mulher.
- E perdia o filho?
- Não, mas tinham que fazer o parto às pressas. Alguém pedia “Água quente! Muita água quente!”.
- Nunca entendi por que precisavam de tanta água quente para os partos...
Não é preciso dizer que estavam todos na mesa de um bar e que ninguém conseguiria se levantar, mesmo que quisesse. Ninguém queria. A conversa chegara ao ponto ideal de melancolia e revolta. Pediram outra rodada de bebidas. Só então se deram conta de que o garçom desaparecera. Não havia mais ninguém no bar.
- Onde será que...
- Ssssshhh!
- Que foi?
- Ouça.
- Eu não estou ouvindo nada.
- Exatamente. Está quieto demais.
Todos se entreolharam. Seria o que eles estavam pensando? Demorou alguns minutos até um deles conseguir dizer a palavra.
- Índios...
Só podia ser.
- Estamos cercados.
- Alguém devia dar uma espiada lá fora. Para ver quantos são.
- Eu estou desarmado.
- Eu tenho um canivete.
- Então vai você.
- E se a gente tentasse negociar?
- Rá. Você não conhece esses selvagens. Não querem conversa. Querem o nosso couro cabeludo.
- Não terão muita sorte com você...
- Nenhum de nós tem o couro cabeludo que tinha antigamente.
Mais suspiros.
- Acho que devemos tentar romper o cerco e ir para casa.
- Não temos chance. Esses cheyennes enxergam no escuro.
- Isto não é território cheyenne.
- Você quer dizer...
- Temo que sim.
A palavra foi dita com um misto de terror e admiração.
- Mescaleros!
Os piores de todos. Mescaleros. Piores do que os sioux, os comanches e os comancheros. Piores do que os pés-negros e os caiapauas. Estavam perdidos.
- Estamos perdidos.
- Espere...
- O quê?
- Ouvi um assovio. São apaches.
- Tem certeza?
- Não passei a infância e a adolescência dentro de cinemas por nada, meu caro. Os mescaleros imitam a coruja. Os apaches assoviam.
- Ainda bem…
- Por quê?
- Os apaches nunca atacam durante a noite. Temos até o amanhecer.
Felizmente reapareceu o garçom e eles puderam pedir mais uma rodada.
Luís Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam

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