Era
uma reunião de amigos, todos já no lado mais preguiçoso dos 40
anos, e já tinham falado de tudo. Do governo, da seleção, da vida
em geral (tudo contra). Foi quando um deles disse:
-
Sabe do que eu tenho saudade?
Ninguém
disse “Do quê?”, porque não precisava. Ele continuou:
-
De filme de pirata.
Os
outros suspiraram. Era verdade. Não faziam mais filmes de pirata.
Mais uma prova de que a vida em geral perdera muito com a passagem
dos anos.
-
E filme com escadaria?
Desta
vez não houve consenso. Como, filme com escadaria?
-
Lembra como as pessoas caíam na escada, antigamente? Volta e meia
rolava alguém pela escada, e morria.
-
Ou então, se era mulher, perdia o filho.
-
Exatamente.
Todos
suspiraram outra vez. Ninguém mais rolava pela escada, nos filmes.
Aliás, as escadas agora é que eram rolantes.
Um
deles, só para provar a inveja retroativa do grupo, revelou que
certa vez vira um filme de pirata com escadaria. Se passava em
Maracaibo.
-
Rolava alguém pela escada?
-
Uma mulher.
-
E perdia o filho?
-
Não, mas tinham que fazer o parto às pressas. Alguém pedia “Água
quente! Muita água quente!”.
-
Nunca entendi por que precisavam de tanta água quente para os
partos...
Não
é preciso dizer que estavam todos na mesa de um bar e que ninguém
conseguiria se levantar, mesmo que quisesse. Ninguém queria. A
conversa chegara ao ponto ideal de melancolia e revolta. Pediram
outra rodada de bebidas. Só então se deram conta de que o garçom
desaparecera. Não havia mais ninguém no bar.
-
Onde será que...
-
Ssssshhh!
-
Que foi?
-
Ouça.
-
Eu não estou ouvindo nada.
-
Exatamente. Está quieto demais.
Todos
se entreolharam. Seria o que eles estavam pensando? Demorou alguns
minutos até um deles conseguir dizer a palavra.
-
Índios...
Só
podia ser.
-
Estamos cercados.
-
Alguém devia dar uma espiada lá fora. Para ver quantos são.
-
Eu estou desarmado.
-
Eu tenho um canivete.
-
Então vai você.
-
E se a gente tentasse negociar?
-
Rá. Você não conhece esses selvagens. Não querem conversa. Querem
o nosso couro cabeludo.
-
Não terão muita sorte com você...
-
Nenhum de nós tem o couro cabeludo que tinha antigamente.
Mais
suspiros.
-
Acho que devemos tentar romper o cerco e ir para casa.
-
Não temos chance. Esses cheyennes enxergam no escuro.
-
Isto não é território cheyenne.
-
Você quer dizer...
-
Temo que sim.
A
palavra foi dita com um misto de terror e admiração.
-
Mescaleros!
Os
piores de todos. Mescaleros. Piores do que os sioux, os comanches e
os comancheros. Piores do que os pés-negros e os caiapauas. Estavam
perdidos.
-
Estamos perdidos.
-
Espere...
-
O quê?
-
Ouvi um assovio. São apaches.
-
Tem certeza?
-
Não passei a infância e a adolescência dentro de cinemas por nada,
meu caro. Os mescaleros imitam a coruja. Os apaches assoviam.
-
Ainda bem…
-
Por quê?
-
Os apaches nunca atacam durante a noite. Temos até o amanhecer.
Felizmente
reapareceu o garçom e eles puderam pedir mais uma rodada.
Luís
Fernando Veríssimo,
in As
mentiras que os homens contam
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