M.A.C.
decidiu ir a pé até a rodoviária: comeria um pastel e seguiria
para a W3-Sul. Numa tarde assim, seca e ensolarada, dava vontade de
caminhar, mas preferi pegar o ônibus uma hora antes do combinado:
saltaria perto do hotel Nacional e desceria a avenida contornando as
casas geminadas.
A
cidade ainda era estranha para mim: espaço grandioso demais para um
ser humano, a superfície de barro e grama rala se perdia no
horizonte do cerrado. A Asa Norte estava quase deserta, era
sexta-feira, e só às três da tarde alguns estudantes saíram dos
edifícios malconservados. Do campus vinham os mais velhos:
universitários, professores, funcionários, a turma escaldada. A
liderança era invisível, os mais perseguidos não tinham nome:
surgiam no momento propício, discursavam, sumiam.
Valmor
não quis ir: medo, só isso, ele disse.
Zombavam
do Valmor, escarneciam do M.A.C., medroso como um rato, mas agora até
o M.A.C. sairia da toca e quem sabe se na próxima vez Valmor…
A
revolta se irmanava ao medo, mas a multidão nos protegia e naquela
tarde éramos milhares. Os militares esperaram o tumulto crescer na
W3, depois se formou o cerco quase perfeito: nas extremidades e
laterais da avenida, nos dois Eixos e nos pontos de fuga da capital.
Às cinco ouvimos os discursos-relâmpago, urramos as palavras de
ordem, pichamos paredes e distribuímos panfletos. A dispersão
começou antes de escurecer.
Ninguém
iria ao Beirute, um bar visado pela polícia, nem ao Eixo Rodoviário,
uma praça de guerra. Durante o corre-corre saí da W3, passei pelos
fundos de lojas e bares do setor comercial, tentando caminhar sem
alarde, assobiando, e o céu ainda azulado era a paisagem possível.
Nunca olhar para trás nem para os lados, nunca se juntar aos outros
manifestantes, fingir que todos os outros são estranhos: instruções
para evitar gestos e atitudes suspeitos. Até então nenhum rosto
conhecido, e a catedral inacabada e o Teatro Nacional não estavam
tão longe. Ficaria por ali à espera da noite, anunciada pela torre
iluminada.
A
dispersão e a correria continuavam: o mais prudente era ficar
sentado no gramado da 302 ou da 307 e assistir ao bate-bola das
crianças. Amanhã um passeio de bote com Liana no lago Paranoá,
domingo a releitura de Huis Clos para o ensaio da peça. Se viver
fosse apenas isso e se a minha voz (e não a de outro) gritasse meu
próprio nome, duas, três vezes… Assustado, reconheci a voz de
M.A.C., o corpo cambaleando em minha direção. A rua e a quadra
comercial foram cercadas como num pesadelo, tentar fugir ou reagir
seria igualmente desastroso. Depois de chutes e empurrões, eu e o
meu colega rumamos para o desconhecido. M.A.C. quis saber para onde
íamos, uma voz sem rosto ameaçou: “Calado, mãos para trás e
cabeça entre as pernas”.
O
trajeto sinuoso, as curvas para despistar o destino da viatura,
manobras num labirinto que apenas imaginávamos e agora estava
acontecendo. Pobre M.A.C., era o mais retraído da segunda série,
misterioso como um bicho esquisito. Tremia ao meu lado, parecia
chorar e continuou a tremer quando saltamos da viatura e escutei sua
voz fraca: “Sou menor de idade”, e logo uma bofetada, a escolta,
o interrogatório. Ainda virou a cabeça, o rosto pedindo socorro…
Não
o vi mais na noite longa. Eu também era menor de idade e escutei
gritos de dor no outro lado de uma porta que nunca foi aberta. Em
algum lugar perto de mim, alguém podia estar morrendo, e essa
conjetura dissipou um pouco meu medo. Na noite do dia seguinte me
largaram na estrada Parque Taguatinga-Guará. A inocência, a
ingenuidade e a ilusão, quase todas as fantasias da juventude tinham
sido enterradas…
Na
segunda-feira M.A.C. não foi ao colégio nem compareceu aos exames.
Mais um desaparecido naquele dezembro em que deixei a cidade.
Durante
muito tempo a memória dos gritos de dor trazia de volta o rosto
assustado do colega.
Trinta
e dois anos depois, na primeira viagem de volta à capital, encontrei
um amigo de 1969 e perguntei sobre M.A.C.
“Está
morando em São Paulo”, ele disse. “Talvez seja teu vizinho.”
“Pensei
que tivesse morrido.”
“De
alguma forma ele morreu. Sumiu do colégio e da cidade, depois
ressuscitou e foi anistiado.”
“Exílio”,
murmurei.
“Delação”,
corrigiu Carlos Marcelo. “M.A.C. era um dedo-duro. Entregou muita
gente e caiu fora.”
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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