quarta-feira, 12 de julho de 2017

Exílio

M.A.C. decidiu ir a pé até a rodoviária: comeria um pastel e seguiria para a W3-Sul. Numa tarde assim, seca e ensolarada, dava vontade de caminhar, mas preferi pegar o ônibus uma hora antes do combinado: saltaria perto do hotel Nacional e desceria a avenida contornando as casas geminadas.
A cidade ainda era estranha para mim: espaço grandioso demais para um ser humano, a superfície de barro e grama rala se perdia no horizonte do cerrado. A Asa Norte estava quase deserta, era sexta-feira, e só às três da tarde alguns estudantes saíram dos edifícios malconservados. Do campus vinham os mais velhos: universitários, professores, funcionários, a turma escaldada. A liderança era invisível, os mais perseguidos não tinham nome: surgiam no momento propício, discursavam, sumiam.
Valmor não quis ir: medo, só isso, ele disse.
Zombavam do Valmor, escarneciam do M.A.C., medroso como um rato, mas agora até o M.A.C. sairia da toca e quem sabe se na próxima vez Valmor…
A revolta se irmanava ao medo, mas a multidão nos protegia e naquela tarde éramos milhares. Os militares esperaram o tumulto crescer na W3, depois se formou o cerco quase perfeito: nas extremidades e laterais da avenida, nos dois Eixos e nos pontos de fuga da capital. Às cinco ouvimos os discursos-relâmpago, urramos as palavras de ordem, pichamos paredes e distribuímos panfletos. A dispersão começou antes de escurecer.
Ninguém iria ao Beirute, um bar visado pela polícia, nem ao Eixo Rodoviário, uma praça de guerra. Durante o corre-corre saí da W3, passei pelos fundos de lojas e bares do setor comercial, tentando caminhar sem alarde, assobiando, e o céu ainda azulado era a paisagem possível. Nunca olhar para trás nem para os lados, nunca se juntar aos outros manifestantes, fingir que todos os outros são estranhos: instruções para evitar gestos e atitudes suspeitos. Até então nenhum rosto conhecido, e a catedral inacabada e o Teatro Nacional não estavam tão longe. Ficaria por ali à espera da noite, anunciada pela torre iluminada.
A dispersão e a correria continuavam: o mais prudente era ficar sentado no gramado da 302 ou da 307 e assistir ao bate-bola das crianças. Amanhã um passeio de bote com Liana no lago Paranoá, domingo a releitura de Huis Clos para o ensaio da peça. Se viver fosse apenas isso e se a minha voz (e não a de outro) gritasse meu próprio nome, duas, três vezes… Assustado, reconheci a voz de M.A.C., o corpo cambaleando em minha direção. A rua e a quadra comercial foram cercadas como num pesadelo, tentar fugir ou reagir seria igualmente desastroso. Depois de chutes e empurrões, eu e o meu colega rumamos para o desconhecido. M.A.C. quis saber para onde íamos, uma voz sem rosto ameaçou: “Calado, mãos para trás e cabeça entre as pernas”.
O trajeto sinuoso, as curvas para despistar o destino da viatura, manobras num labirinto que apenas imaginávamos e agora estava acontecendo. Pobre M.A.C., era o mais retraído da segunda série, misterioso como um bicho esquisito. Tremia ao meu lado, parecia chorar e continuou a tremer quando saltamos da viatura e escutei sua voz fraca: “Sou menor de idade”, e logo uma bofetada, a escolta, o interrogatório. Ainda virou a cabeça, o rosto pedindo socorro…
Não o vi mais na noite longa. Eu também era menor de idade e escutei gritos de dor no outro lado de uma porta que nunca foi aberta. Em algum lugar perto de mim, alguém podia estar morrendo, e essa conjetura dissipou um pouco meu medo. Na noite do dia seguinte me largaram na estrada Parque Taguatinga-Guará. A inocência, a ingenuidade e a ilusão, quase todas as fantasias da juventude tinham sido enterradas…
Na segunda-feira M.A.C. não foi ao colégio nem compareceu aos exames. Mais um desaparecido naquele dezembro em que deixei a cidade.
Durante muito tempo a memória dos gritos de dor trazia de volta o rosto assustado do colega.
Trinta e dois anos depois, na primeira viagem de volta à capital, encontrei um amigo de 1969 e perguntei sobre M.A.C.
Está morando em São Paulo”, ele disse. “Talvez seja teu vizinho.”
Pensei que tivesse morrido.”
De alguma forma ele morreu. Sumiu do colégio e da cidade, depois ressuscitou e foi anistiado.”
Exílio”, murmurei.
Delação”, corrigiu Carlos Marcelo. “M.A.C. era um dedo-duro. Entregou muita gente e caiu fora.”
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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