Continuei
minha carreira de escritor faminto por mais alguns anos. Minha
máquina de escrever vivia entrando e saindo do prego até que
finalmente fiquei tão fodido que não tive como resgatá-la. Gastei
a grana do penhor trocando o bilhete por dinheiro para beber certa
noite num bar e, depois disso, comecei a escrever minhas histórias à
mão, às vezes com ilustrações. Segui vagabundeando ao redor do
país e segui enviando contos escritos à mão. Por fim, uma das mais
prestigiosas revistas literárias da época aceitou e publicou meu
primeiro conto. O pagamento foi uma piada, mas recebi cartas de
outras revistas, inclusive da Esquire, na qual pediam para ver
o meu trabalho. E cartas de pessoas se oferecendo para serem meus
agentes, caso eu não tivesse um. Diabos, eu não tinha um agente,
nem mesmo uma máquina de escrever. Algo relacionado com romper a
barreira acabou tendo sobre mim um efeito contrário, desestimulante.
Decidi que era capaz de escrever bem o suficiente, mas que não tinha
nada a dizer. Parei de escrever por dez anos e me concentrei somente
na bebida. Acabei indo parar na enfermaria de caridade do County
Hospital com um padre inclinado sobre mim querendo me dar a
extrema-unção. Dei um corridão no pilantra e arrumei um emprego
como motorista de caminhão para uma loja de luminárias. Tive sorte,
arrumei um lugar legal na Kingsley Drive, uma máquina de escrever e
conseguia chegar em casa todas as noites, só que em vez de jantar eu
tomava dois ou mais fardos de seis cervejas. Logo me descobri
escrevendo algo muito estranho: poesia.
Mantendo
a concisão: um casamento veio e se foi. Meus poemas saíram em
centenas de pequenas revistas, mas isso aconteceu com todo mundo,
como limpar seus rabos ou trocar a arruela de uma torneira que pinga.
As guerras e os anos se seguiram, e também as namoradas insanas e os
empregos, tolos e insanos. Como alguém repassa duas ou três décadas
de desperdício? Num estalar de dedos. É fácil. Os anos estão aí
para serem desperdiçados.
Graças
ao meu jeito de louco quando bebo acabei por me tornar o maluco da
cidade. Um professor universitário me convidou para ir a sua casa e
depois de um belo jantar, com vinho que não parava de jorrar, se
iniciou uma discussão sobre arte e poesia, que são duas coisas que
em geral me desagradam. Foi quando me levantei e arrebentei com seu
closet chinês e, não sei bem como, isso foi creditado como o ato de
um gênio. Tal estupidez me garantiu um trabalho como colunista para
um jornal alternativo. E era como se eu tivesse me esquecido de John
Bante. Mas de fato eu não o esquecera. Eu o havia extraviado.
Então
aí pule alguns anos perdidos... Arrumei um emprego noturno no
correio, de atendente, e, depois de onze anos e meio, esse trabalho –
como qualquer trabalho fará – estava me matando. Eu estava virado
numa pilha de nervos. Meu corpo combalido, um calafrio de agonia. Não
conseguia mais mexer meu pescoço. Se alguém tocava em mim, rajadas
de dor varriam meu corpo. Nenhum dos outros atendentes tinha
consciência disso. Eu era o cara bacana, o bufão, conversava com os
caras mais malvados e ficava nessas conversas furadas todas as
noites, e geralmente eu ganhava na garganta, mas tudo não passava de
uma proteção, de uma cortina de fumaça: eu estava morrendo.
Certa
noite, dirigia para casa, depois das costumeiras três horas e meia
de horas extras. Havia recebido uma série de multas e já recebera
um aviso do departamento de trânsito de que estavam considerando
caçar minha carteira. Os policiais me mantinham amedrontado. Então
tive que fazer uma curva para a esquerda. Não tinha pisca-pisca no
meu antigo carro. Movi meu braço direito, com alguma dificuldade, em
direção à janela para sinalizar que dobraria à esquerda. A dor me
atacou como se tivesse sido liberada por uma torneira. E percebi que
o máximo que conseguiria mover meu braço seria suficiente apenas
para colocar uma parte da minha mão para fora da janela. Apenas a
mão, nada do braço. E me vi fazendo isso como se eu fosse duas
pessoas – uma que assistisse à outra. Ergui um dos dedos daquela
mão na direção da noite, um dedinho de nada, e com a outra mão
girei o volante para fazer a curva para a esquerda. E então comecei
a rir, tudo aquilo era estúpido demais, estava deixando com que me
matassem. Mas a risada foi boa, daquelas que aliviam a gente. E
então, enquanto seguia guiando, intuí que precisava dar o fora.
Sabia que qualquer vagabundo favelado, que dormisse num beco, levava
uma vida melhor do que a minha, que eu era um dos maiores idiotas que
já pisara na face da Terra. Era uma noite a ser lembrada. E ainda
que esta seja a história de John Bante, não creio que haja maneira
de contá-la sem acrescentar alguns desses fatos. Bem, acrescentem aí
alguns dias ou semanas e uma curiosa sorte me alcançou: um homem
estranho e careca, J. K. Larkin, que viria a ser meu futuro editor,
me ofereceu uma quantia fixa pelo resto da vida, escrevesse ou não,
para largar o correio. Aceitei e livrei meu rabo de lá... Fazia
tanto tempo desde que eu batera à porta de Bante e que aquela velha
enrolada no cobertor me mandara para aquele lugar…
Charles
Bukowski, in Pedaços de um caderno manchado de vinho
Nenhum comentário:
Postar um comentário