quarta-feira, 19 de julho de 2017

Eu conheço o mestre (trecho)


Continuei minha carreira de escritor faminto por mais alguns anos. Minha máquina de escrever vivia entrando e saindo do prego até que finalmente fiquei tão fodido que não tive como resgatá-la. Gastei a grana do penhor trocando o bilhete por dinheiro para beber certa noite num bar e, depois disso, comecei a escrever minhas histórias à mão, às vezes com ilustrações. Segui vagabundeando ao redor do país e segui enviando contos escritos à mão. Por fim, uma das mais prestigiosas revistas literárias da época aceitou e publicou meu primeiro conto. O pagamento foi uma piada, mas recebi cartas de outras revistas, inclusive da Esquire, na qual pediam para ver o meu trabalho. E cartas de pessoas se oferecendo para serem meus agentes, caso eu não tivesse um. Diabos, eu não tinha um agente, nem mesmo uma máquina de escrever. Algo relacionado com romper a barreira acabou tendo sobre mim um efeito contrário, desestimulante. Decidi que era capaz de escrever bem o suficiente, mas que não tinha nada a dizer. Parei de escrever por dez anos e me concentrei somente na bebida. Acabei indo parar na enfermaria de caridade do County Hospital com um padre inclinado sobre mim querendo me dar a extrema-unção. Dei um corridão no pilantra e arrumei um emprego como motorista de caminhão para uma loja de luminárias. Tive sorte, arrumei um lugar legal na Kingsley Drive, uma máquina de escrever e conseguia chegar em casa todas as noites, só que em vez de jantar eu tomava dois ou mais fardos de seis cervejas. Logo me descobri escrevendo algo muito estranho: poesia.
Mantendo a concisão: um casamento veio e se foi. Meus poemas saíram em centenas de pequenas revistas, mas isso aconteceu com todo mundo, como limpar seus rabos ou trocar a arruela de uma torneira que pinga. As guerras e os anos se seguiram, e também as namoradas insanas e os empregos, tolos e insanos. Como alguém repassa duas ou três décadas de desperdício? Num estalar de dedos. É fácil. Os anos estão aí para serem desperdiçados.
Graças ao meu jeito de louco quando bebo acabei por me tornar o maluco da cidade. Um professor universitário me convidou para ir a sua casa e depois de um belo jantar, com vinho que não parava de jorrar, se iniciou uma discussão sobre arte e poesia, que são duas coisas que em geral me desagradam. Foi quando me levantei e arrebentei com seu closet chinês e, não sei bem como, isso foi creditado como o ato de um gênio. Tal estupidez me garantiu um trabalho como colunista para um jornal alternativo. E era como se eu tivesse me esquecido de John Bante. Mas de fato eu não o esquecera. Eu o havia extraviado.
Então aí pule alguns anos perdidos... Arrumei um emprego noturno no correio, de atendente, e, depois de onze anos e meio, esse trabalho – como qualquer trabalho fará – estava me matando. Eu estava virado numa pilha de nervos. Meu corpo combalido, um calafrio de agonia. Não conseguia mais mexer meu pescoço. Se alguém tocava em mim, rajadas de dor varriam meu corpo. Nenhum dos outros atendentes tinha consciência disso. Eu era o cara bacana, o bufão, conversava com os caras mais malvados e ficava nessas conversas furadas todas as noites, e geralmente eu ganhava na garganta, mas tudo não passava de uma proteção, de uma cortina de fumaça: eu estava morrendo.
Certa noite, dirigia para casa, depois das costumeiras três horas e meia de horas extras. Havia recebido uma série de multas e já recebera um aviso do departamento de trânsito de que estavam considerando caçar minha carteira. Os policiais me mantinham amedrontado. Então tive que fazer uma curva para a esquerda. Não tinha pisca-pisca no meu antigo carro. Movi meu braço direito, com alguma dificuldade, em direção à janela para sinalizar que dobraria à esquerda. A dor me atacou como se tivesse sido liberada por uma torneira. E percebi que o máximo que conseguiria mover meu braço seria suficiente apenas para colocar uma parte da minha mão para fora da janela. Apenas a mão, nada do braço. E me vi fazendo isso como se eu fosse duas pessoas – uma que assistisse à outra. Ergui um dos dedos daquela mão na direção da noite, um dedinho de nada, e com a outra mão girei o volante para fazer a curva para a esquerda. E então comecei a rir, tudo aquilo era estúpido demais, estava deixando com que me matassem. Mas a risada foi boa, daquelas que aliviam a gente. E então, enquanto seguia guiando, intuí que precisava dar o fora. Sabia que qualquer vagabundo favelado, que dormisse num beco, levava uma vida melhor do que a minha, que eu era um dos maiores idiotas que já pisara na face da Terra. Era uma noite a ser lembrada. E ainda que esta seja a história de John Bante, não creio que haja maneira de contá-la sem acrescentar alguns desses fatos. Bem, acrescentem aí alguns dias ou semanas e uma curiosa sorte me alcançou: um homem estranho e careca, J. K. Larkin, que viria a ser meu futuro editor, me ofereceu uma quantia fixa pelo resto da vida, escrevesse ou não, para largar o correio. Aceitei e livrei meu rabo de lá... Fazia tanto tempo desde que eu batera à porta de Bante e que aquela velha enrolada no cobertor me mandara para aquele lugar…
Charles Bukowski, in Pedaços de um caderno manchado de vinho

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