Um
jovem entrega seu rascunho ao professor de criação literária.
“Mestre, aqui está o que escrevi”, diz. Antecipando-se ao risco
da crítica, acrescenta: “É péssimo. Dá-me a impressão de que
foi outro que escreveu”. O rapaz está certo: a escrita, boa ou
ruim, é sempre de um outro. A divergência o leva a pensar que um
estranho o domina. O outro que nele habita, porém, ainda é ele
mesmo.
A
história do jovem atrapalhado com sua escrita está em Ensaios
íntimos e imperfeitos (L&PM Editores), de Luiz Antonio de
Assis Brasil. Reunião de especulações breves que desestabilizam um
pouco tudo aquilo que o próprio escritor gaúcho ensina em suas
concorridas oficinas literárias. De que serve transmitir habilidade
e técnica se, em literatura, o mais importante fica sempre de fora?
Mais: será possível acessar essa zona cinzenta na qual a voz de um
outro – involuntária como um sonho – nos subjuga?
É,
sim, mas não através de bulas ou de mordaças. E só se paramos
para escutar (para ler) a voz desse desconhecido. Enquanto escreve,
seja o que for, um escritor lê a si mesmo. E, para ler a si, nem as
rotinas da biologia emprestam garantias. A desestabilização, sugere
Assis Brasil, está no próprio corpo. Em um capítulo dedicado à
anatomia humana, ele diz: “Nosso corpo é nosso estranho. É um
outro que não dominamos”.
O
tema da submissão involuntária se repete no capítulo que Luiz
Antonio de Assis Brasil dedica ao destino. Nele, recorda a tarde em
que o filósofo romano Cícero recebeu a visita de um amigo
atormentado, o cônsul Hirtius, ansioso para saber o que é, afinal,
o destino. O amigo esperava uma resposta, recebeu uma rasteira.
Contorcendo as palavras, Cícero lhe mostrou que, quando falamos do
destino, falamos, na verdade, de outra coisa. “Não se discute a
existência do destino ao se pensar nele, mas se discute a
liberdade”, resume Assis Brasil.
Interrogar-se
sobre o destino só tem sentido se nos perguntamos a respeito da
liberdade. É sempre assim: pensamos falar de uma coisa e falamos de
outra. Esse deslocamento original é o tema dos pequenos, mas
vigorosos, ensaios de Assis Brasil. Logo à entrada, ele nos diz que
eles não devem ser de imediato aceitos; e, se aceitos, não devem
ser entendidos como categóricos. Sem nenhuma autopiedade, o escritor
arremata: “Se entendidos como categóricos, devem ser esquecidos”.
O
esquecimento está na origem das palavras. As velhas tias contavam
que a primeira palavra do bebê foi “água”. Assis Brasil
observa: “Como eram surdas, poderia ser isso ou qualquer outra
coisa”. Piedosa, a mãe garante que as palavras iniciais do infante
foram “Salve santo Antônio”. O adulto crê, deseja crer.
Contudo, ele nos lembra, quando o bebê pronuncia sua primeira
palavra, não há ninguém por perto. Esse é um ato sem testemunhas:
“Um descuido da babá, da mamã, da vovó, e a criança diz a
palavra secreta”. Assim, a real primeira palavra é “jogada ao
silêncio, ao vazio, ao nada”. Sobre esse lapso, construímos
nossos destinos. A partir dele, os escritores fazem literatura.
Também
as últimas palavras vêm encharcadas pelas circunstâncias. Quando
subiu ao cadafalso, Maria Antonieta, a última rainha da França,
pisou acidentalmente no pé de seu carrasco. Sem pensar, ela murmurou
suas últimas palavras: “Senhor, peço desculpas, foi sem querer”.
Segundos antes da morte, as últimas palavras de Maria Antonieta não
se referiam ao destino, ou à glória, ou a Deus. Mas a um pequeno
acidente que, por acaso, ainda lhe coube viver. Conclui Assis Brasil:
“Maria Antonieta comprova que, sim, podemos pertencer sem
constrangimento à espécie humana”. Que se constitui não de
passos lineares, mas de escorregões.
Daí
o cuidado que devemos ter com as palavras. Elas são cápsulas de
pouca resistência, com que encobrimos (escondemos) a ignorância.
“Damos nomes às coisas para encarcerá-las no tempo”, diz Assis
Brasil. Palavras, então, são cárceres. Com elas, carregados pelas
miudezas do cotidiano, perseguimos alguma coisa do mundo. Alguma
coisa que, como a primeira palavra do bebê, nunca se deixa pegar.
Daí
outra ideia, que Assis Brasil defende com insistência: a de que
escrever é “dar limites”. Mas dar limites a quê? Sob a crosta
da escrita se abre um abismo. Ele nos leva à vertigem, nem os
limites a atenuam. É o horror do vazio que nos leva, por exemplo, em
pura exibição de desamparo, ao recurso dos adjetivos. “Na
linguagem, os adjetivos representam o medo que o substantivo,
sozinho, leve-nos ao Nada”, diz.
Os
ensaios em fragmentos de Assis Brasil são, eles mesmos, com suas
fendas e irregularidades, metáforas das privações que sustentam a
literatura. Podemos compará-las ao que se passa no espaço cósmico,
em que astros e estrelas (palavras) são apenas diminutos acidentes.
Jovens escritores, ansiosos, creem que a maturidade está em sua
superação. Esquecem-se do exemplo da música, que não existiria
não fosse a pausa – o silêncio. Recorda Assis Brasil: “Ali, na
pausa, é que está a música”. Não houvesse pausas, não
poderíamos ouvir. Houve uma pausa primordial, anterior à Criação
dos místicos, ou ao Big Bang dos cientistas, que, ao descerrar
(limitar) uma fenda entre a sombra e a luz, separou o caos do cosmos.
Teólogos e cientistas, cada um a seu modo, tentam reconstituí-la.
Ela está perdida para sempre.
Em
um intervalo de minha leitura, recebo o e-mail de um amigo, M., ainda
abalado com a morte recente, no Rio, do psicanalista Wilson Chebabi,
que foi um mestre para toda uma geração. Escreve esse amigo,
repetindo uma frase que ouviu na missa fúnebre: “Com ele aprendi a
perceber que há o errado no certo e o certo no errado”. De novo,
as interrupções bruscas, a ação radical do silêncio, os furos
que reviram as ideias. Limites que meu amigo soube ler não em um
livro, mas em sua tristeza. Volto a Assis Brasil, quando ele nos
lembra que o sábio é aquele que “não desconhece que suas
palavras são relativas, que seus dentes caem, que sua lógica é
frágil”. Nenhuma dessas restrições o leva a desistir de saber,
ao contrário, elas o levam a desejar saber.
José
Castello, in Sábados inquietos
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