sábado, 1 de julho de 2017

Ensaios da ignorância

Um jovem entrega seu rascunho ao professor de criação literária. “Mestre, aqui está o que escrevi”, diz. Antecipando-se ao risco da crítica, acrescenta: “É péssimo. Dá-me a impressão de que foi outro que escreveu”. O rapaz está certo: a escrita, boa ou ruim, é sempre de um outro. A divergência o leva a pensar que um estranho o domina. O outro que nele habita, porém, ainda é ele mesmo.
A história do jovem atrapalhado com sua escrita está em Ensaios íntimos e imperfeitos (L&PM Editores), de Luiz Antonio de Assis Brasil. Reunião de especulações breves que desestabilizam um pouco tudo aquilo que o próprio escritor gaúcho ensina em suas concorridas oficinas literárias. De que serve transmitir habilidade e técnica se, em literatura, o mais importante fica sempre de fora? Mais: será possível acessar essa zona cinzenta na qual a voz de um outro – involuntária como um sonho – nos subjuga?
É, sim, mas não através de bulas ou de mordaças. E só se paramos para escutar (para ler) a voz desse desconhecido. Enquanto escreve, seja o que for, um escritor lê a si mesmo. E, para ler a si, nem as rotinas da biologia emprestam garantias. A desestabilização, sugere Assis Brasil, está no próprio corpo. Em um capítulo dedicado à anatomia humana, ele diz: “Nosso corpo é nosso estranho. É um outro que não dominamos”.
O tema da submissão involuntária se repete no capítulo que Luiz Antonio de Assis Brasil dedica ao destino. Nele, recorda a tarde em que o filósofo romano Cícero recebeu a visita de um amigo atormentado, o cônsul Hirtius, ansioso para saber o que é, afinal, o destino. O amigo esperava uma resposta, recebeu uma rasteira. Contorcendo as palavras, Cícero lhe mostrou que, quando falamos do destino, falamos, na verdade, de outra coisa. “Não se discute a existência do destino ao se pensar nele, mas se discute a liberdade”, resume Assis Brasil.
Interrogar-se sobre o destino só tem sentido se nos perguntamos a respeito da liberdade. É sempre assim: pensamos falar de uma coisa e falamos de outra. Esse deslocamento original é o tema dos pequenos, mas vigorosos, ensaios de Assis Brasil. Logo à entrada, ele nos diz que eles não devem ser de imediato aceitos; e, se aceitos, não devem ser entendidos como categóricos. Sem nenhuma autopiedade, o escritor arremata: “Se entendidos como categóricos, devem ser esquecidos”.
O esquecimento está na origem das palavras. As velhas tias contavam que a primeira palavra do bebê foi “água”. Assis Brasil observa: “Como eram surdas, poderia ser isso ou qualquer outra coisa”. Piedosa, a mãe garante que as palavras iniciais do infante foram “Salve santo Antônio”. O adulto crê, deseja crer. Contudo, ele nos lembra, quando o bebê pronuncia sua primeira palavra, não há ninguém por perto. Esse é um ato sem testemunhas: “Um descuido da babá, da mamã, da vovó, e a criança diz a palavra secreta”. Assim, a real primeira palavra é “jogada ao silêncio, ao vazio, ao nada”. Sobre esse lapso, construímos nossos destinos. A partir dele, os escritores fazem literatura.
Também as últimas palavras vêm encharcadas pelas circunstâncias. Quando subiu ao cadafalso, Maria Antonieta, a última rainha da França, pisou acidentalmente no pé de seu carrasco. Sem pensar, ela murmurou suas últimas palavras: “Senhor, peço desculpas, foi sem querer”. Segundos antes da morte, as últimas palavras de Maria Antonieta não se referiam ao destino, ou à glória, ou a Deus. Mas a um pequeno acidente que, por acaso, ainda lhe coube viver. Conclui Assis Brasil: “Maria Antonieta comprova que, sim, podemos pertencer sem constrangimento à espécie humana”. Que se constitui não de passos lineares, mas de escorregões.
Daí o cuidado que devemos ter com as palavras. Elas são cápsulas de pouca resistência, com que encobrimos (escondemos) a ignorância. “Damos nomes às coisas para encarcerá-las no tempo”, diz Assis Brasil. Palavras, então, são cárceres. Com elas, carregados pelas miudezas do cotidiano, perseguimos alguma coisa do mundo. Alguma coisa que, como a primeira palavra do bebê, nunca se deixa pegar.
Daí outra ideia, que Assis Brasil defende com insistência: a de que escrever é “dar limites”. Mas dar limites a quê? Sob a crosta da escrita se abre um abismo. Ele nos leva à vertigem, nem os limites a atenuam. É o horror do vazio que nos leva, por exemplo, em pura exibição de desamparo, ao recurso dos adjetivos. “Na linguagem, os adjetivos representam o medo que o substantivo, sozinho, leve-nos ao Nada”, diz.
Os ensaios em fragmentos de Assis Brasil são, eles mesmos, com suas fendas e irregularidades, metáforas das privações que sustentam a literatura. Podemos compará-las ao que se passa no espaço cósmico, em que astros e estrelas (palavras) são apenas diminutos acidentes. Jovens escritores, ansiosos, creem que a maturidade está em sua superação. Esquecem-se do exemplo da música, que não existiria não fosse a pausa – o silêncio. Recorda Assis Brasil: “Ali, na pausa, é que está a música”. Não houvesse pausas, não poderíamos ouvir. Houve uma pausa primordial, anterior à Criação dos místicos, ou ao Big Bang dos cientistas, que, ao descerrar (limitar) uma fenda entre a sombra e a luz, separou o caos do cosmos. Teólogos e cientistas, cada um a seu modo, tentam reconstituí-la. Ela está perdida para sempre.
Em um intervalo de minha leitura, recebo o e-mail de um amigo, M., ainda abalado com a morte recente, no Rio, do psicanalista Wilson Chebabi, que foi um mestre para toda uma geração. Escreve esse amigo, repetindo uma frase que ouviu na missa fúnebre: “Com ele aprendi a perceber que há o errado no certo e o certo no errado”. De novo, as interrupções bruscas, a ação radical do silêncio, os furos que reviram as ideias. Limites que meu amigo soube ler não em um livro, mas em sua tristeza. Volto a Assis Brasil, quando ele nos lembra que o sábio é aquele que “não desconhece que suas palavras são relativas, que seus dentes caem, que sua lógica é frágil”. Nenhuma dessas restrições o leva a desistir de saber, ao contrário, elas o levam a desejar saber.
José Castello, in Sábados inquietos

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